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As lipodistrofias são um grupo heterogêneo de doenças caracterizadas por falta total ou parcial de tecido gorduroso subcutâneo e depleção da capacidade de armazenamento de gordura. Podem ser congênitas ou adquiridas, totais ou parciais.
O tecido adiposo é um órgão endócrino. Isso já ouvimos algumas vezes. Ele produz diversas citocinas e mediadores bioativos, tais como leptina, adiponectina, citocinas inflamatórias, das quais já falamos no post obesidade e inflamação.
As duas principais adipocinas a serem relembradas aqui nesse texto é a adiponectina e leptina. A adiponectina melhora a sensibilidade à insulina. A leptina produzida pelo tecido gorduroso regula o apetite, gordura corporal, metabolismo da glicose, sensibilidade à insulina, função reprodutiva e neuroendócrina. A falta de leptina aumenta muito o apetite e induz resistência insulínica. A deficiência dessas duas substâncias explica muito do quadro das lipodistrofias, principalmente a falta da leptina.
Já vimos também que a gordura ectópica é o resultado do transbordamento de gordura para órgãos com fígado e pâncreas quando os depósitos de gordura subcutânea são esgotados. Isso resulta no aumento da resistência insulínica.
Vamos ver em seguida os principais grupos de lipodistrofias.
Lipodistrofia congênita generalizada – LCG
Essa síndrome leva os nomes dos seus descobridores – Síndrome de Berardinelli-Seip. Caracteriza-se pela ausência completa do tecido gorduroso desde o nascimento. No Brasil, temos uma grande população de pacientes com essa doença no Estado do Rio Grande do Norte. Esse fenômeno que se explica pelo grande número de casamentos consanguíneos naquela região. O tipo de herança genética dessa doença é autossômica recessiva.
Lipodistrofia parcial familiar – LDFP
Na lipodistrofia parcial familiar, há perda de gordura nos membros, nádegas e quadril. Há acúmulo de gordura em certas regiões (variável conforme o subtipo) e pode resultar em uma aparência semelhante à Síndrome de Cushing (cushingóide). A distribuição de gordura é normal na infância, com a perda de gordura começando na puberdade. A hipertrofia muscular é comum.
Existem vários subtipos da LDFP. O tipo 1 ou lipodistrofia variedade Köbberling tem herança poligênica. O tipo 2, ou lipodistrofia variedade Dunnigan, é a forma mais comum e tem herança autossômica dominante. Outros tipos são descritos e podem ser consultados nos textos de referência.
Complicações metabólicas são comuns na vida adulta com aumento do risco de doença coronária e cardiomiopatia precoce.
Lipodistrofia adquirida generalizada – LAG
A Síndrome de Lawrence ou lipodistrofia adquirida generalizada é mais comum em mulheres (3 mulheres:1 homem). Aparece geralmente antes da adolescência, mas pode ser em qualquer fase da vida. A perda progressiva de gordura afeta todo o corpo, incluindo palmas das mãos e plantas dos pés, mas algum acúmulo de gordura pode aparecer na face, pescoço e axila.
Complicações metabólicas são frequentes e geralmente é esse tipo de lipodistrofia é associada a doenças autoimunes (tireoidite de Hashimoto, artrite reumatoide, hepatite autoimune etc.).
Lipodistrofia adquirida parcial – LAP
Conhecida também com Síndrome deBarraquer- Simons. Uma das formas mais comuns de lipodistrofia. Predomina em mulheres (4 mulheres:1 homem) e tem seu início na infância e adolescência. Há perda de gordura que se inicia na face e desce para o tronco. O acúmulo de gordura pode aparecer nos quadris, nádegas e pernas.
A LAP é associada a doença autoimune, principalmente glomerolunefrite membranoproliferativa em aproximadamente 20% dos pacientes. A maioria tem complemento 3 sérico baixo. Complicações metabólicas são incomuns.
A. Homem brasileiro de 15 anos com lipodistrofia generalizada congênita tipo 2. B. Criança 8 anos com lipodistrofia generalizada adquirida. Ele teve paniculite aos 3 anos de idade e perda progressiva da gordura corporal. C. Mulher de 29 anos com lipodistrofia parcial familiar variedade Dunnigan. Ela tem perda da gordura em extremidades e em região glútea, mas acúmulo de gordura em face, pescoço, tórax e dorso superior. D. Mulher com 59 anos de idade, com lipodistrofia parcial adquirida (Barraquer-Simons). Ela tem perda de gordura em hemicorpo superior e acúmulo de gordura no hemicorpo inferior. Ref 3.
Tipo de herança
Subtipo
Fenótipo
Genes envolvidos
Autossômica recessiva
LCG – congênita generalizada
Ausência quase total de gordura corporal, musculatura proeminente, complicações metabólicas
AGPAT2, BSCL2, CAV1, PTRF, PCYT1A, PPAR
Síndromes progeróides
Ausência parcial ou generalizada de gordura corpora, características progeróides, complicações metabólicas variáveis
LMNA, ZMPSTE24, SPRTN, WRN, BANF1
LDFP – parcial familial
Ausência de gordura nos membros, complicações metabólicas
CIDEC, LIPE, PCYT1A
Auto inflamatório
Ausência de gordura e complicações metabólicas variáveis
PSMB8
Autossômica dominante
LDFP – parcial familial
Ausência de gordura a partir dos membros, complicações metabólicas
LMNA, FBN1, CAV1, POLD1, KCNJ6
Síndromes progeróides
Ausência parcial ou generalizada de gordura corpora, características progeróides, complicações metabólicas variáveis
LMNA, FBN1, CAV1, POLD1, KCNJ6
Síndrome SHORT
Perda de gordura corporal variável, baixa estatura, complicações metabólicas
PIK3R1
Adquirida
LAG – adquirida generalizada
Ausência quase total de gordura corporal, complicações metabólicas
Nenhuma
LPA – adquirida parcial
Ausência de gordura na metade superior do corpo com aumento da gordura na metade inferior; pouca ou nenhuma complicação metabólica
Nenhuma
Tabela 1. Tipo de lipodistrofias conforme herança genética, fenótipos e genes envolvidos.
Prógeria – doença rara com envelhecimento precoce. Foto Wikipedia.
Diagnóstico das lipodistrofias
Vamos ver agora as principais características clínicas das síndromes lipodistróficas:
Achado essencial
Falta de gordura generalizada ou em algumas regiões do corpo
Achados físicos
Déficit de crescimento em crianças
Musculatura proeminente – por aumento da insulina e de hormônios masculinos (hiperandrogenismo)
Envelhecimento precoce (aparência progeróide) nas síndromes relacionadas
Tipos de lipodistrofias. Modificado de Ref. 2.
Comorbidades
Diabetes mellitus com necessidade de altas doses de insulina
≥200UI ao dia
≥2UI/kg/dia
Necessidade de insulina concentrada (ex. U300)
Cetose é rara
Hipertrigliceridemia grave
≥500 mg/dL com ou sem tratamento
≥250 mg/dL a despeito da dieta e medicação
Pancreatite de repetição e xantomas eruptivos
Doença hepática gordurosa não-alcoólica
Cardiomiopatia prematura
Síndrome dos Ovários Policísticos
Outras informações da história médica
Padrão autossômico dominante ou recessivo de achados clínicos ou complicações metabólicas similares;
Hiperfagia significativa (apetite voraz) – manifesto como irritabilidade/agressividade em crianças.
A lipodistrofia pelo tratamento do HIV é mais rara hoje em dia por conta da introdução de novos antiretrovirais, mas ainda deve ser lembrada.
Diagnóstico diferencial
Doenças que levam à perda de peso intensa podem ser confundidas com as lipodistrofias. Podemos citar como exemplos: desnutrição, anorexia nervosa, diabetes descompensado, tireotoxicose, insuficiência adrenal, caquexia por câncer, emagrecimento associado ao HIV e infecções crônicas.
Há uma dificuldade de diferenciação da lipodistrofia principalmente com diabetes descompensado, pois ambos podem ter aumento dos triglicérides. Entretanto, ao se controlar o diabetes, o paciente reganha gordura corporal.
A lipodistrofia generalizada pode ser confundida com mutação do receptor de insulina ou acromegalia/gigantismo. Já a lipodistrofia parcial pode ser confundida com Síndrome de Cushing, obesidade central e lipomatose simétrica múltipla.
Diferenciando o tipo de lipodistrofia
Avaliação da história de casos semelhantes na árvore genealógica sugere se a lipodistrofia é familiar. Pesquisar pelas fotos dos pacientes quando criança também ajuda, uma vez que a LGC é manifesta desde o nascimento.
Foto de criança com lipodistrofia generalizada congênita. Fonte – Portal G1
A presença de doença autoimune (miosite, diabetes tipo 1, hepatite autoimune e outras) aumenta a suspeita de lipodistrofia adquirida.
Testes genéticos podem ser úteis, mas um teste negativo não exclui o diagnóstico.
A avaliação da composição corporal por bioimpedância, densitometria de corpo inteiro podem contribuir para o diagnóstico.
Pesquisa de comorbidades
A lista de comorbidades metabólicas das lipodistrofias é extensa. Já falamos de muitas delas em outros posts do blog. São elas:
Doença renal – proteinúria é comum. Biópsia renal deve ser realizada quando clinicamente indicado. A patologia pode indicar nefropatia diabética, glomeroluoesclerose focal segmentar (especialmente na lipodistrofia congênita generalizada) ou glomerulonefrite pseudomembranosa (especialmente na lipodistrofia parcial adquirida).
Aqui, serão tratadas as particularidades no manejo das lipodistrofias em adultos. Particularidades na infância podem ser consultadas nos textos-base das referências.
Dieta
Deve ser balanceada (50 – 60% de carboidratos, 20-30% de gordura e 20% de proteínas), restrita em calorias. Dieta do Mediterrâneo pode ser uma boa opção.
Se houver quilomicronemia, recomenda-se dieta muito pobre em gordura.
Pacientes com lipodistrofia, especialmente nas formas generalizadas, são hiperfágicos, devido à falta de leptina. A restrição calórica é importante para não piorar as complicações metabólicas, principalmente o diabetes.
Exercício físico
Pacientes devem ser encorajados a se exercitarem na ausência de contraindicação específica. Aqueles com subtipos de lipodistrofia que predisponham a cardiomiopatia devem fazer uma avaliação cardiológica antes de iniciar a prática de atividade física.
Tratamento medicamentoso das lipodistrofias
Metreleptina
É uma medicação análoga à leptina. Foi aprovado pela ANVISA em 2023.
Na lipodistrofia generalizada, a metreleptina (Myalept®) associada à dieta é a primeira linha de tratamento para as alterações endócrinas e metabólicas. Deve ser considerada nos pacientes com lipodistrofia parcial se houver alterações metabólicas graves (HBA1c > 8% e TG > 500mg/dL)
No Brasil é aprovada para as lipodistrofias generalizadas a partir dos 2 anos e nas parciais a partir dos 12 anos. A dose é proporcional ao peso e administrada uma vez ao dia por via subcutânea.
A metreleptina reduz a fome, melhora o controle glicêmico e níveis de triglicérides e outras comorbidades associadas às lipodistrofias.
Tratamento das complicações metabólicas
No tratamento do diabetes, a metformina é medicação de primeira linha. A insulina quase sempre é necessária para controle da hiperglicemia, que costuma ser grave. Para as lipodistrofias generalizadas, por conta da ausência de tecido adiposo, há necessidade de grandes doses de insulina. Nesse caso, as preparações concentradas de insulina podem ser necessárias (U-300). A via de aplicação acaba sendo muitas vezes a intramuscular.
A pioglitazona pode melhorar o perfil metabólico em pacientes com lipodistrofia parcial, mas deve ser utilizada com cautela na lipodistrofia generalizada.
Análogos de GLP1 para controle do apetite e do diabetes têm dados são limitados na literatura. Há relatos de caso de melhora clínica na lipodistrofia parcial
Os fibratos são as medicações de eleição para hipertrigliceridemia. Óleo de peixe (ômega 3) pode adicionado aos fibratos se houver hipertrigliceridemia persistente. Deve-se evitar a niacina pelo aumento de resistência insulínica. Novas medicações para a hipertrigliceridemia associada à lipodistrofia parcial também estão disponíveis no Brasil, como é a volanesorsena (Waylivra®).
Tratamentos cosméticos de preenchimento das áreas sem gordura tem impacto positivo sobre autoestima e fatores psicológicos.
Em relação à contracepção, se necessária, deve-se evitar estrógenos orais. Preferir contraceptivos orais a base de progestógenos. Na terapia hormonal da menopausa, preferir a via transdérmica do estradiol.
Considerações finais
As lipodistrofias generalizadas são raras, mas no Brasil nem tanto. Eu tive oportunidade de ver um caso na minha residência médica no Hospital das Clínicas da USP e o aspecto físico dela, a quantidade de insulina que usava nunca me saiu da memória. Infelizmente, naquela época não havia tratamento específico como temos hoje.
Os endocrinologistas e qualquer médico que atenda pacientes com diabetes tem mais chance de se deparar com as lipodistrofias parciais no dia a dia, que são muito semelhantes aos pacientes com diabetes tipo 2. Reconhecer esses pacientes e saber direcionar o tratamento é necessário. Nos casos graves, temos as novas medicações que são a metreleptina e a volanesorsena.
A ausência de gordura pelas lipodistrofias causa um problemão metabólico. Algumas vezes, acho que se cria um problema semelhante em relação aos pacientes com síndrome metabólica ou aqueles que têm maior risco de desenvolvê-las quando são submetidos a cirurgias plásticas com retirada de toda camada de gordura subcutânea em uma área extensa do corpo. Guardadas as devidas proporções, se o paciente volta a engordar depois da cirurgia, pode ser que eles fiquem parecidos metabolicamente com os pacientes com lipodistrofias parciais. Essa situação aparece no consultório. Será que estamos diante de uma lipodistrofia provocada?
Referências
Brown RJ, Araujo-Vilar D, Cheung PT, Dunger D, Garg A, Jack M, Mungai L, Oral EA, Patni N, Rother KI, von Schnurbein J, Sorkina E, Stanley T, Vigouroux C, Wabitsch M, Williams R, Yorifuji T. The Diagnosis and Management of Lipodystrophy Syndromes: A Multi-Society Practice Guideline. J Clin Endocrinol Metab. 2016 Dec;101(12):4500-4511. doi: 10.1210/jc.2016-2466. Epub 2016 Oct 6. PMID: 27710244; PMCID: PMC5155679.
Angelidi AM, Filippaios A, Mantzoros CS. Severe insulin resistance syndromes. J Clin Invest. 2021 Feb 15;131(4):e142245. doi: 10.1172/JCI142245. PMID: 33586681; PMCID: PMC7880309.
Patni N, Garg A. Lipodystrophy for the Diabetologist-What to Look For. Curr Diab Rep. 2022 Sep;22(9):461-470. doi: 10.1007/s11892-022-01485-w. Epub 2022 Jul 11. PMID: 35821558; PMCID: PMC10704567.
de Azevedo Medeiros, L.B., Cândido Dantas, V.K., Craveiro Sarmento, A.S. et al. High prevalence of Berardinelli-Seip Congenital Lipodystrophy in Rio Grande do Norte State, Northeast Brazil. Diabetol Metab Syndr9, 80 (2017). https://doi.org/10.1186/s13098-017-0280-7
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Esse post é um alerta para quem está com o colesterol ruim alto.
Quando o colesterol ruim sobe, temos que descartar que seja por conta da diminuição da função da tireoide, o hipotireoidismo: o colesterol está alto porque há pouco hormônio de tireoide.
No hipotireoidismo descompensado, temos lesão muscular. Na clínica, o paciente se queixa de dores musculares; no laboratório, temos aumento do TSH e de uma enzima muscular chamada creatinoquinase, creatinofosfoquinase ou CPK.
Por que é importante saber disso?
Porque o tratamento do aumento do colesterol é geralmente feito com uma classe de medicações chamadas de estatinas. Elas podem aumentar potencializar a lesão muscular causada pelo hipotireoidismo e elevando vertiginosamente a CPK. Além da exarcerbação da dor muscular, podemos ter lesão do rim pelo aumento da CPK.
Qual são os recados importantes:
Na investigação do aumento do colesterol, é altamente recomendável avaliar a função da tireoide;
No hipotireoidismo diagnosticado, sempre dar primeiro o hormônio da tireoide e depois ver se o colesterol normaliza ou ainda permanece alto;
Se o colesterol permanece alto com o hipotireoidismo compensado e na ausência de outras causas, pode-se pensar em dar as estatinas para controle do colesterol.
Não dar estatinas antes de controlar o hipertireoidismo, pois poderá piorar a lesão muscular e causar danos aos rins.
Abaixo, os posts relacionados ao tema, com exemplo de vida real de uma paciente que recebeu estatina e estava com hipotireoidismo descompensado.
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Endocrinologista pela Sociedade Brasileira de Endocrinologia e Metabologia, Doutora em Ciências pela USP, Professora do curso de Medicina da uninove campus Mauá
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