Investigação da Síndrome de Cushing – cortisol alto

No post anterior, vimos são quais os achados clínicos que sugerem a presença do excesso de cortisol e de corticóides sínteticos (dexametasona, por exemplo) que culminam no dramático quadro da Síndrome de Cushing.

Após a exclusão do uso de qualquer uso prolongado de corticoides, nos pacientes com suspeita de Síndrome de Cushing, devemos prosseguir com a investigação laboratorial e confirmar se há real aumento da produção de cortisol pelas adrenais.

A confirmação do hipercortisolismo (que é o termo técnico para o excesso de cortisol) por mais de um teste laboratorial é fundamental antes de qualquer método de imagem da adrenal ou hipófise.

Os testes para confirmação do aumento do cortisol levam em consideração (1) o excesso de sua produção, (2) a perda do padrão circadiano de sua secreção ou (3) a perda dos mecanismos de sua regulação.

Princípios dos testes para detecção do hipercortisolismo

O cortisol é um dos hormônio que tem uma variação circadiana, tendo o seu pico de concentração durante a manhã e o seu nadir por volta da meia-noite, conforme a figura abaixo.

Variação do cortisol conforme fases do dia.

A produção de cortisol feita pelas adrenais é estimulada pelo hormônio chamado adrenocorticotrófico (ACTH), produzido pela hipófise. Para a secreção de ACTH, a hipófise, por sua vez, é estimulada pelo hormônio hipotalâmico liberador da corticotrofina (CRH).

eixo hipotálamo-hipófise-adrenal

Pelo modelo de feedback ou retroalimentação hormonal, baixos níveis de cortisol estimulam a secreção do ACTH hipofisário, e altos níveis de cortisol (hipercortisolismo) inibem a secreção do ACTH. É como se os níveis baixos de cortisol dessem um aviso para hipófise que a adrenal precisa de mais estímulo para subir a produção e normalizar os níveis dos hormônios esteroides adrenais.

O hipercortisolismo é associado com perda do seu padrão circadiano e perda da regulação pelo ACTH. Sobre essas características da doença foram desenvolvidos os testes de laboratoriais para detecção da Síndrome de Cushing endógena (quando o excesso de produção vem das adrenais e não da ingestão de medicamentos contendo corticoides).

Parece, mas não é!

Não existe um teste ou exame perfeito para todas as pessoas. Cada um dos três métodos mais utilizados têm suas limitações dependendo do perfil de cada paciente. Mais de uma amostra de sangue ou urina para o mesmo tipo de exame, ou ainda associação de exames diferentes são necessários para confirmar o diagnóstico, já que existem muitas condições que podem simular clinicamente a Síndrome de Cushing ou levar ao aumento do cortisol, conforme tabela abaixo.

Condições associadas com aumento do cortisol na ausência de Síndrome de Cushing. 
Algumas características da S. de Cushing podem estar presentes
Gravidez
Depressão e outras condições psiquiátricas 
Dependência de álcool 
Obesidade grave 
Diabetes mellitus descompensado 
Qualquer característica clínica de Síndrome de Cushing é improvável 
Estresse físico (hospitalização, cirurgia, dor) 
Desnutrição, anorexia nervosa 
Exercício intenso de forma contínua
Amenorreia hipotalâmica 
Tabela com as condições clínicas que cursam com aumento de cortisol sem ser Síndrome de Cushing

Outro ponto FUNDAMENTAL é que o cortisol medido no sangue na manhã e sem preparo prévio NÃO deve ser utilizado para diagnóstico de excesso desse hormônio. Desculpem-me as letras garrafais, é que a solicitação desse exame é extremamente comum e fora de contexto clínico, ou seja, é solicitado de forma incorreta e indiscriminada.

A dosagem do cortisol sérico é útil para avaliar deficiência de cortisol. Se for para avaliar o hipercortisolismo, o cortisol deve ser colhido após um preparo que consiste na ingestão de dexametasona na noite anterior ou em pequenas doses nas 48h antes da coleta.

A simples picada da agulha para coleta da amostra de sangue pode elevar o cortisol. Alguns medicamentos como pílulas anticoncepcionais aumentam a proteína carreadora do cortisol, a CBG, elevando os níveis séricos desse hormônio. A diferença entre os hormônios ligados e livres estão no post: hormônios ligados e livres.

Quais são os exames e testes para avaliar o aumento do cortisol? 

Existem diversos tipos de ensaios (métodos) laboratoriais para o mesmo tipo de exame. A cromatografia líquida de alta performance e a espectrometria de massa são as mais recomendadas, já que a estrutura química dos hormônios produzidos no córtex adrenal são muito semelhantes e esses médodos conseguem melhor diferenciá-los. 

Cortisol livre urinário de 24h

É a dosagem da fração livre (não ligada) na urina. Esse exame tira o problema dos exames falso-positivos por aumento da proteína carreadora. O cortisol livre urinário reflete diretamente a fração bioativa do hormônio no sangue, ou seja, a fração que realmente promove as ações celulares do cortisol. 

O complicado dessa metodologia é que pode haver coleta inadequada do volume de amostra de urina. O mais frequente não se consiga coletar no frasco toda quantidade de urina das 24h.

Esse método é adequado em pacientes que têm a função renal normal e deve-se ser assegurado que todo volume das 24h foi coletado. Para saber se a coleta foi adequada, é aconselhável a dosagem de creatinina na urina de 24h. Valores de creatinina menores que 1,5g por dia em homens e 1,0g por dia em mulheres indicam coleta incompleta da urina nas 24h. 

Cortisol salivar à meia-noite 

O cortisol salivar também representa a fração livre e bioativa do hormônio. Esse teste detecta a perda da ciclicidade da secreção do cortisol, com detecção de maiores níveis do hormônio na saliva à meia-noite na Síndrome de Cushing. Como vimos, o esperado é que os níveis de cortisol sejam menores à noite.

A coleta do cortisol salivar é realizada no domicílio e amostra é levada ao laboratório no dia seguinte. Deve-se também estar atento ao preparo da coleta. O contato prévio com o laboratório é recomendado para obter as informações sobre o exame.

Teste de supressão com 1mg de dexametasona overnight

A dosagem do cortisol no sangue é feita no período da manhã após a ingestão de dexametasona 1,0 a 2,0 mg, por via oral, entre 23h a noite anterior ou à meia-noite. 

Em condições normais, a resposta esperada após a administração da dexametasona é que esse potente corticoide iniba a secreção do ACTH e, em efeito cascata, reduza a produção de cortisol pelas adrenais. Dessa forma, esperamos valores baixos (ou suprimidos) de cortisol sérico pela manhã após a ingestão de dexametasona em indivíduos saudáveis. Para alguns pacientes desavisados, o resultado do cortisol pós-dexametasona abaixo do valor de referência do método pode assustar.

Na Síndrome de Cushing, há perda do feedback negativo (pelo menos pacialmente) do eixo, e a administração de dexametasona não é capaz de suprimir a secreção de cortisol pelas adrenais. Portanto, nessa síndrome, temos valores não suprimidos do cortisol e maiores do que o esperado em condições normais. O valor de corte para determinar o hipercortisolismo nesse teste é dosagem de cortisol maior ou igual a 1,8mg/dL após a supressão com dexametasona.

Esse teste tem muitos problemas. Como o cortisol medido no sangue dosa também a sua fração ligada, a elevação da concentração da proteína carreadora (CBG) resulta em valores maiores de cortisol total, mesmo que não haja aumento da sua fração livre. Além das condições fisiológicas como a gravidez, o uso de anticoncepcional hormonal oral (pílulas contraceptivas) e terapia hormonal na menopausa aumentam os níveis de CBG. Se esse teste for considerado, deve-se suspender a ingestão de hormônios de quatro a seis semanas antes do teste, se possível. 

Há também uma série de medicamentos que aceleram ou inibem o metabolismo da dexametasona e podem levar a resultados falso-positivos ou falso-negativos.

Confirmação do hipercortisolismo

Uma sugestão de investigação para a Síndrome de Cushing está esquematizada no quadro abaixo. A escolha do melhor teste depende das condições de cada paciente. Percebam que é preciso mais de um teste ou modificações do mesmo teste para cada situação.

Sugestão de investigação do excesso de cortisol pela adrenal. 
Mais de um teste deve ser realizado. Os principais são o cortisol urinário de 24h, a supressão do cortisol após a ingestão de 1mg de dexametasona e o cortisol salivar à meia-noite. Semais de um exame vier normal, a Síndrome de Cushing é improvável.
Algoritmo de investigação do hipercortisolismo. Modificado da ref 1.

O endocrinologista pode ser consultado logo no ínicio para investigação da Síndrome de Cushing ou mais adiante após um teste positivo para hipercortisolismo. O papel do endocrinologista é confirmar o excesso de cortisol por mais um teste, sempre de acordo com as características do paciente, e assim prosseguir a investigação por exames de imagem para determinar onde está a fonte do excesso hormonal.

Procurando a fonte do problema

Mais adiante no fluxograma de investigação, o passo seguinte é determinar se a Síndrome de Cushing é dependente da ação de ACTH ou independente da ação do ACTH. No primeiro caso, na Síndrome de Cushing ACTH-dependente, o problema em geral está na hipófise, onde haveria produção do ACTH por tumores nessa glândula e com consequente hiperestímulo das adrenais.

A Síndrome de Cushing ACTH-dependente de origem hipofisária é também conhecida por Doença de Cushing. Raramente, o ACTH é produzido por tumores fora da hipófise.

Se a Síndrome de Cushing ACTH-independente, ou seja, quando a adrenal não está sob o estímulo do ACTH, o problema é na própria adrenal. Esse é um exemplo do que chamamos produção autônoma da glândula, que pode ser consequência de tumores ou outras doenças que levam ao aumento da produção do cortisol pelo córtex adrenal.

Devemos investigar Síndrome de Cushing nos casos de incidentalomas adrenais, que são tumores descobertos ao acaso em exames que não miraram problemas na adrenal (uma tomografia na procura de cálculo renal, por exemplo).

Tratamento da Síndrome de Cushing

A retirada do tumor produtor de ACTH ou cortisol é o objetivo principal do tratamento para Síndrome de Cushing endógena. Para quem faz uso de corticóide, o natural seria retirar a medicação se for possível – nem sempre o é!

Quando a retirada do tumor ou suspensão do uso de corticoide é factível, complicações como diabetes, hipertensão e obesidade podem ter resolução total ou parcial. Apesar da notícia da cirurgia assustar, os benefícios do procedimento podem ser enormes.

Considerações finais

Como vimos, para chegar ao parágrafo do tratamento da Síndrome de Cushing, um longo percurso desde a suspeita até confirmação do diagnóstico é percorrido. Mesmo para os endocrinologistas, isso não é tarefa fácil. Incidentalomas hipofisários e adrenais, condições que simulam a síndrome de Cushing (pseudocushing), testes e exames solicitados de forma inadequada são algumas armadilhas e obstáculos.

Se você teve um resultado de cortisol alto, não se assuste e converse com o seu médico. Se preciso, peça a ajuda de um endocrinologista.

Referência

  1. The Diagnosis of Cushing’s Syndrome: An Endocrine
    Society Clinical Practice Guideline. The Journal of Clinical Endocrinology & Metabolism, Volume 93, Issue 5, 1 May 2008, Pages 1526–1540, https://doi.org/10.1210/jc.2008-0125. Diretriz Americana para o Diagnóstico da Síndrome de Cushing (em inglês)

Se você gostou da leitura, não deixe curtir e de compartilhar o conteúdo.

Para receber em primeira mão as publicações, você pode se inscrever no blog ou me acompanhar pelas redes sociais. Os links estão no rodapé desta página.

Espero ver você mais vezes!

Um forte abraço,

Suzana

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.