Automonitoramento da glicemia em diabetes tipo 2 sem uso de insulina

Vale a pena orientar o paciente com diabetes tipo 2 sem uso de insulina a fazer o automonitoramento da glicemia? Já faz um bom tempo que essa pergunta é feita. Lembro que desde a época que fazia residência médica (no início dos anos 2000) já tínhamos essa dúvida. Naquela época, havia apenas os exames de glicemia na amostra de sangue retirada da ponta do dedo (glicemia capilar), medida da glicose na urina e estava se iniciando a monitorização contínua da glicose intersticial.

Nas últimas duas décadas, testemunhamos o desenvolvimento de aparelhos de glicemia capilar (glicosímetros) cada vez mais modernos e o aperfeiçoamento da monitorização contínua da glicose intersticial. Apesar de todo esse avanço da tecnologia em diabetes, a pergunta sobre se vale a pena usar automonitorização ou automonitoramento glicêmico em pessoas com diabetes tipo 2 que não usam insulina ainda continua sem reposta ou tem opiniões controversas.

Estudos controlados versus estudos de vida real

O que temos de estudos científicos para responder essa pergunta? Para isso, vou rapidamente comentar sobre quais tipos de evidência científica são feitas as recomendações que adotamos no dia a dia. A base para a tomada de decisões é hoje feita no que chamamos medicina baseada em evidência (MBE).

A MBE estratifica os estudos científicos quanto ao nível da qualidade de evidência científica (capacidade de responder à pergunta feita com maior efetividade). Há uma pirâmide que exemplifica a força do resultado do estudo para determinar o grau de recomendação para tomada de decisões, que pode ser para utilização de algum exame ou uso de medicação, por exemplo.

Pirâmide evidência científica

Os ensaios clínicos são muito utilizados para determinar a eficácia e segurança de e analisam um cenário em que se compara dois grupos de uma população homogênea. Um grupo é o placebo ou não intervenção e o outro grupo é o que se faz alguma intervenção (por exemplo, o automonitoramento glicêmico). Teoricamente, a resposta a desses estudos só podem ser aplicadas a uma população no mundo real igual àquela que fora estudada dentro do ensaio clínico.

As metanálises e revisões sistemáticas estão no topo da pirâmide de evidências e são realizadas através de seleção dos resultados de ensaios clínicos semelhantes, cujos resultados são compilados e processados conjuntamente. Essas metodologias são geralmente utilizadas para aprovação de uma determinada medicação ou tecnologia pelas agências regulatórias, como a ANVISA no Brasil.

No mundo real, quando aplicamos as recomendações dos ensaios clínicos e metanálises não temos o rigor de controle desses estudos. Quando aplicamos uma nova medicação ou tecnologia nos nossos pacientes, o que temos é um universo de pessoas (população) muito diferentes entre si e que, muitas vezes, não se encaixam nos critérios de eleição dos estudos científicos. O resultado é que, diversas vezes, vemos respostas diferentes para mais ou para menos daquelas que temos conhecimento dos estudos científicos.

Para tentar minimizar a diferença de resultados, há alguns anos vem sendo desenvolvidos estudos de vida real ou de mundo real para avaliar como se comporta determinada recomendação em uma população mais diversificada. A ideia é que possamos saber como uma intervenção se comporta em um cenário parecido como o que temos no nosso dia a dia. Esse tipo de modelo é muito interessante, mas ainda não totalmente aceito ou disseminado entre as instituições de ensino e agências regulatórias.

Medicina Baseada em Evidência e Medicina Baseada em Fisiopatologia

A endocrinologia é a área que estuda mais a fundo o diabetes (diabetologia), mais do que na medicina baseada em evidências, nos norteamos pela fisiopatologia da doença. Explico melhor, tentamos analisar quais os mecanismos subjacentes predominantes que levam a uma determinada doença. No caso do diabetes, tentamos verificar ou induzir se a pessoa tem mais resistência à ação da insulina ou se há uma deficiência da secreção de insulina pelo pâncreas, resultando em maior glicemia de jejum ou pós-refeição, respectivamente. A monitorização da glicose pode ajudar a entender os mecanismos problemáticos que fazem aumentar a glicemia e ajudar médico e paciente a delinear melhor estratégia de tratamento.

Os pacientes não são iguais entre si e ainda um mesmo tipo de diabetes podem ter um ou outro mecanismo predominante ou ainda os dois. Daí a máxima “cada caso é um caso” tão falada entre nós no sentido que não dá para utilizar a mesma fórmula para todo mundo.

Por que estamos falando de estudos e de fisiopatologia antes do assunto em si? Porque a maioria dos estudos controlados falam que não há benefício em monitorizar a glicemia em pessoas com diabetes tipo 2 que não usam insulina ou o benefício é muito pequeno e limitado a um determinado número de medidas. 

Estudos de automonitoramento glicêmico em diabetes tipo 2 sem uso de insulina

Frequentemente ouvíamos dizer que a monitorização em pacientes com diabetes que não usavam insulina além de não melhorar o controle glicêmico, poderia ainda piorar a qualidade de vida desses pacientes. Entreatanto, a Associação Americana de Diabetes considera que o automonitoramento glicêmico por ponta de dedo reduz a HbA1c de 0,25 a 0,3% em 6 meses. O que falam estudos recentes?

Um ensaio clínico realizado nos Estados Unidos na atenção primária avaliou 450 pacientes com diabetes tipo 2 com hemoglobina glicada entre 6,5% e 9,0% quanto ao impacto do automonitoramento da glicemia capilar sobre a redução da hemoglobina glicada e qualidade de vida. Foram comparados três grupos para diferentes intervenções: um grupo que não fazia testes de glicemia capilar, um grupo que fazia testes uma vez ao dia e outro que fazia testes e recebia uma mensagem personalizada pelo glicosímetro (aparelho de medir a glicose). A conclusão desse estudo foi que em pacientes com diabetes tipo 2 sem uso de insulina não houve diferença significativa em relação à melhora da hemoglobina glicada, qualidade de vida e hipoglicemia entre os pacientes que fizeram e os que não fizeram controle glicêmico por ponta de dedo.

Ainda sobre o automonitoramento da glicemia capilar, uma revisão sistemática e metanálise de doze ensaios clínicos publicada em 2018, avaliou o impacto do automonitoramento glicêmico por glicemia capilar em pacientes com diabetes tipo 2 que não usavam insulina. Os dados de 3350 pacientes dos 12 estudos foram analisados com o objetivo de determinar o número adequado de picadas de dedo por semana que traria algum benefício. Esse estudo demostrou que o número entre 8 a 14 medidas por semana foi associado com melhora da HbA1c (hemoglobina glicada) em média de 0,45% em 6 meses e 0,2% em 12 meses. OUtro resultado observado foi que até sete medidas de glicemia por semana trouxe benefício algum para o controle glicêmico nos pacientes avaliados.

Avaliação contínua da glicose

A hemoglobina glicada é o parâmetro de eleição para avaliar o risco de complicações do diabetes na literatura científica e na prática diária. Como aliado ao controle da diabetes, o uso da monitorização contínua da glicose nos traz informações adicionais que podem ser úteis para personalizar o tratamento e ações dos pacientes frente aos resultados obtidos.

Parâmetros obtidos pelo sistema de avaliação contínua da glicose como tempo no alvo e porcentagem de hipoglicemias e variabilidade glicêmica são atualmente considerados como parâmetro de bom controle glicêmico em complemento à dosagem de hemoglobina glicada. Entretanto, os estudos com monitorização contínua da glicose em diabetes tipo 2 foram realizados preferencialmente em pacientes com diabetes tipo 2 em uso de insulina.

Monitorização contínua da glicose

A glicemia capilar é dolorosa e cara. A avaliação contínua da glicose pelo sistema de monitorização contínua ( em inglês :continuous-glucose-monitoring – CGM) resolveu em parte o problema das picadas, mas não é uma tecnologia coberta pelo sistema público de saúde e é inacessível para a maior parte da população.

Monitorização para DM2 no SUS e na Saúde Suplementar

A advogada Débora Aligieri traz nos próximos parágrafos a situação da cobertura na saúde pública e privada das tecnologias para o automonitoramento glicêmico.

No mercado há diversas opções de compra de equipamentos médicos para monitorar a glicemia, desde glicosímetros até sensores de glicose intersticial, associados ou não a bomba de insulina. E no Sistema Único de Saúde (SUS), quais são as opções oferecidas às pessoas com diabetes tipo 2 para a monitorização da glicemia? E os planos de saúde, cobrem a monitorização de glicemia desses pacientes?

Conforme a Lei Federal nº 11.347/2006, os diabéticos deverão receber os materiais necessários ao monitoramento da glicemia capilar gratuitamente pelo SUS, estabelecendo a Portaria nº 2.583/2007 o fornecimento de tiras reagentes e lancetas  (artigo 1º, inciso II, letras “b” e “c”). Todavia o artigo 2º dessa Portaria restringe o acesso aos usuários insulinodependentes. Portanto, pessoas com diabetes tipo 2 só tem direito ao recebimento de glicosímetro, fitas medidoras e lancetas pelo SUS caso usem insulina.  Mas, ainda que não recebam o aparelho e materiais para a monitorização, os DM2 que não usam insulina podem realizar o teste de glicemia na unidade de saúde onde são atendidos. Conforme Protocolo Clínico e Diretrizes Terapêuticas para DM2 proposto pelo Ministério da Saúde, a glicemia capilar desses pacientes pode ser realizada na unidade de saúde por ocasião das consultas com os profissionais de saúde, de acordo com a definição da equipe  que os acompanha.

Sensores de glicose intersticial (associados ou não a bomba de insulina) ainda não integram o protocolo do SUS para o tratamento de qualquer tipo de diabetes. Mesmo assim, é possível o paciente DM2 acessar estes insumos através de um pedido administrativo à Secretaria Municipal ou Estadual de Saúde. Mas a concessão fica a critério da gestão local.

Já os planos de saúde, em regra, não cobrem qualquer tipo de monitorização glicêmica, seja qual for o tipo de diabetes, pois a Lei nº 9.656/98 (Lei dos Planos de Saúde) exclui o fornecimento de medicamentos e insumos para tratamento domiciliar de suas responsabilidades perante os associados. Mas também neste caso é possível a realização de um pedido administrativo, cuja concessão é igualmente discricionária, portanto depende da boa vontade da operadora.

Considerações finais

O automonitoramento glicêmico tem pouco ou nenhum benefício em relação à hemoglobina glicada quando a avaliação é feita pelos ensaios clínicos e metanálises. No mundo real, tanto a glicemia capilar quanto a monitorização da glicose intersticial em tempo real (CGM) são utilizadas em pacientes com diabetes tipo 2 com ou sem uso de insulina. Além de ajudarem os médicos na conduta terapêutica, os pacientes acabam entendendo o impacto dos alimentos que consomem e da atividade física na sua glicemia e a tomarem ações frente aos resultados obtidos. Em pacientes com diabetes tipo 2 recém-diagnosticada essas informações são valiosas para o controle da doença.

Sabemos que a decisão de se implantar ou não uma tecnologia no SUS e na saúde suplementar é regida pela medicina baseada em evidências. Os processos administrativos são burocráticos e desgastantes para médicos e pacientes. Considerando as particularidades de cada caso, o automonitoramento glicêmico poderia ser utilizado para pacientes com diabetes tipo 2 recém-diagnosticados ou em qualquer momento quando estiverem com sintomas de hipoglicemias ou com evidências de descompensação do diabetes.

Em lugar de seguirmos protocolos engessados, a decisão ou não de lançar mão ou não do automonitoramento para controle da glicemia pacientes com diabetes tipo 2 poderia ser do médico compartilhada com o paciente e devidamente coberta pelo sistema público ou suplementar de saúde. O automonitoramente poderia ser devidamente justificado e reavaliado caso a caso após 3 ou 6 meses de testes, e seu impacto observado no níveis de glicemia e qualidade de vida dos pacientes. Mais que medicina baseada em evidências, cabe aqui considerar o que vemos no mundo real.

Cabe a nós, pessoas envolvidas no cuidado do diabetes (próprio ou de alguém próximo, seja familiar ou paciente) fazer esse debate nos espaços – on-line e off-line – que frequentamos, visando a melhoria da qualidade de vida das pessoas com diabetes através da atualização constante da política de diabetes no Brasil, e da sustentabilidade do SUS através do uso racional de tecnologias destinadas ao cuidado de pessoa com diabetes.

Referências

  1. Xu Y, Tan DHY, Lee JY. Evaluating the impact of self-monitoring of blood glucose frequencies on glucose control in patients with type 2 diabetes who do not use insulin: A systematic review and meta-analysis. Int J Clin Pract. 2019;73(7):e13357. doi:10.1111/ijcp.13357
  2. Young LA, Buse JB, Weaver MA, et al. Glucose Self-monitoring in Non-Insulin-Treated Patients With Type 2 Diabetes in Primary Care Settings: A Randomized Trial. JAMA Intern Med. 2017;177(7):920-929. doi:10.1001/jamainternmed.2017.1233
  3. Carlson AL, Mullen DM, Bergenstal RM. Clinical Use of Continuous Glucose Monitoring in Adults with Type 2 Diabetes. Diabetes Technol Ther. 2017;19(S2):S4-S11. doi:10.1089/dia.2017.0024
  4. BRASIL. Lei nº 11.347, de 27 de setembro 2006. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2004-2006/2006/Lei/L11347.htm>
  5. BRASIL, Ministério da Saúde. Portaria nº 2.583, de 10 de outubro 2007. Disponível em: <http://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2007/prt2583_10_10_2007.html>
  6. BRASIL. Lei nº 9.656, de 03 de junho de 1998. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L9656compilado.htm>

Observação: Agradecemos a contribuição de Karla Melo para as reflexões do texto através do compartilhamento de artigos sobre estudos acerca da eficácia da monitorização para DM2.

Débora Aligieri

Advogada, blogueira, ativista e conselheira de saúde, mestranda em Saúde Pública pela FSP/USP, integrante do Departamento de Saúde Pública, Epidemiologia, Economia em Saúde e Advocacy da SBD. Editora do blog Diabetes e Democracia.

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