Transtornos alimentares na endocrinologia

Os transtornos alimentares se caracterizam por atitudes distorcidas em relação ao peso, forma do corpo e ao ato de comer. Esses transtornos vêm aumentando nos últimos 50 anos e o ambiente relacionado à comida tem sido implicado.

São condições que cursam com alterações na alimentação e/ou nos comportamentos a ela relacionados e que se manifestam com intensidade e duração suficientes para causar impacto na saúde física ou no funcionamento biopsicossocial.

  • Em comportamento que prejudiquem a absorção adequada de nutrientes;
  • Não são consequência de uma doença física;
  • Não representam um padrão alimentar culturalmente sancionado ou são apropriados para o estágio de desenvolvimento do indivíduo.

A anorexia nervosa precisa de uma equipe multiprofissional no manejo, incluindo o endocrinologista para contornar as complicações hormonais e metabólicas. Na endocrinologia, nos deparamos mais frequentemente com a bulimia ou o transtorno de compulsão alimentar, já que muitos pacientes vem a nós por conta do excesso de peso.

Classificação dos transtornos alimentares

São reconhecidos seis principais tipos de transtorno alimentar pelas atuais classificações das doenças, a Classificação Internacional de Problemas Relacionados à Saúde (CID 11) e DMS 5 – Manual diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais. São elas:

Transtorno alimentar – TA

  1. Anorexia nervosa (AN)
  2. Bulimia nervosa (BN)
  3. Compulsão alimentar (TCA)
  4. Transtorno alimentar restritivo-evitativo (TARE)
  5. Pica ou alotriofagia
  6. Transtorno de regurgitação-ruminação

Existem ainda os transtornos alimentares não especificados.

Embora não reconhecido oficialmente nas classificações oficiais, não poderia deixar de falar do que conhecemos como padrão alimentar “beliscador”, que é caracterizado por comer pequenas porções ao longo do dia, de forma não planejada, relacionada ao comer emocional e com algum nível de sensação de perda de controle. Em inglês, esse padrão é conhecido por grazing. Há ainda o padrão hiperfágico prandial, que é aquele “bom de garfo”: se alimenta em excesso nos horários de refeição, mas não belisca entre elas.

Os beliscadores podem ter episódios de compulsão alimentar. O que se diferencia o beliscar da compulsão alimentar é que nessa última há uma grande quantidade de calorias consumidas em um curto espaço de tempo e sempre há sensação da perda de controle. Podemos dizer que a quantidade de calorias no padrão beliscador é diluída ao longo do dia e nem sempre há sensação de perda de controle. Esse comportamento é associado à obesidade e particularmente mantido em pacientes que o tinham antes de cirurgia bariátrica.

Existe ainda a Síndrome do Comer Noturno, quando o paciente come muito mais à noite que durante o dia, depois do jantar. Ele pode acordar na madrugada para “atacar a geladeira” e tem a sensação de que não conseguirá dormir sem se alimentar. É como um episódio de compulsão alimentar, mas exclusivo do período noturno.

Nada impede que o paciente tenha mais de um padrão alimentar dos que foram descritos.

A seguir, algumas características dos principais transtornos alimentares oficialmente reconhecidos pelas classificações de saúde mental.

Anorexia nervosa

É um transtorno mental grave, caracterizado por medo intenso de ganhar peso ou transtorno de imagem corporal, ou ambos, que motiva a restrição alimentar grave e outras atitudes para perda de peso, como atividade física em excesso, uso de laxantes e diuréticos.

  • Baixo peso
  • Medo de ganhar peso
  • Preocupação excessiva com o peso e forma corporal
  • Restrição alimentar e/ou comportamento para reduzir o peso (restrição/purgação)

A preocupação com o peso extrema que leva ao baixo peso distingue a anorexia nervosa da bulimia.

Bulimia nervosa

A bulimia pode ocorrer com peso normal ou elevado. É caracterizado por episódios recorrentes de compulsão alimentar (ingestão de grandes quantidades de calorias em curto espaço de tempo com sensação de perda de controle) e atitudes compensatórias para prevenir ganho de peso. Em inglês, o termo é conhecido como binge eating.

  • Episódios recorrentes de compulsão alimentar (sensação de perda do controle)
  • ComportamentoS compensatórioS inadequados e recorrentes, tais como uso de laxantes, excesso de exercícios físicos, indução de vômitos, omissão de doses de insulina (diabulimia)
  • Preocupação excessiva com o peso e forma corporal

A bulimia nervosa difere da compulsão alimentar pela presença na primeira dos mecanismos compensatórios.

Transtorno de compulsão alimentar (TCA)

O TCA se caracteriza por episódios recorrentes e angustiantes de compulsão alimentar, com menos comportamentos compensatórios do que na bulimia nervosa. De 30 a 34% dos pacientes com transtorno de compulsão alimentar ou bulimia têm obesidade e as alterações metabólicas relacionados. Principais características do TCA:

  • Episódios recorrentes de compulsão alimentar
  • Indicadores de comportamento de perda de controle
  • Sofrimento e angústia marcantes
  • Ausência de mecanismos compensatórios

O episódio de compulsão alimentar é diferente do padrão beliscador. Na compulsão alimentar, há uma ingestão exagerada de calorias em um pequeno intervalo de tempo e não esperada para a ocasião ou contexto, enquanto o padrão beliscador as calorias consumidas por vez são menores, mas distribuída ao longo do dia.

TARE – Transtorno alimentar restritivo-evitativo

No transtorno de ingestão alimentar restritivo-evitativo os sintomas principais são evitar ou restringir alimentos (em relação ao volume ou variedade), juntamente com um ou mais dos seguintes: perda de peso ou crescimento deficiente, deficiências nutricionais, dependência de alimentação por sonda ou suplementos nutricionais para ingestão suficiente e comprometimento psicossocial. Os sintomas podem surgir no contexto de uma ausência global de interesse pela comida e por comer, seletividade alimentar baseada na sensibilidade sensorial e medo das consequências negativas da alimentação relacionadas a experiências aversivas, como engasgo ou vômito. É um paciente com paladar exigente. Em inglês, o termo usado é picky eating.

  • Presença de comportamento alimentar de restrição ou evitação graves
  • Ausência de preocupação com imagem corporal
  • Não decorre da indisponibilidade de alimentos ou de uma prática culturalmente aceita
  • Restrição alimentar baseada em pouco interesse em comer
  • Evitação baseada em aversão ou medo de comer (fobia levando à evitação de comida)
  • Evitação baseada em aspectos sensoriais (comedores seletivos)

É um diagnóstico de exclusão e pode ser confundido com anorexia nervosa.

Pica (alotriofagia)

Envolve a ingestão de substâncias não nutritivas (ex. cimento, terra, madeira) por um período igual ou superior a um mês. Os principais gatilhos são o gosto da substância, o tédio, a curiosidade ou a tensão psicológica e deficiências nutricionais. É muito lembrada a associação de

O termo “pica” foi extraído do latim para a ave chamada pega, que ingere o que vier pela frente.

Transtorno de ruminação

O distúrbio de ruminação envolve regurgitação de alimentos durante ou após a alimentação, na ausência de náusea, náusea involuntária ou repulsa. Parece haver prazer ou alívio da ansiedade com esse comportamento. Os comportamentos causam sentimento de vergonha, por isso, os pacientes acometidos os mantêm em segredo.

Complicações dos transtornos alimentares

Complicações da Anorexia nervosa

Todos os sistemas do corpo são afetados pela inanição e os danos se acumulam ao longo do tempo. Se há comportamentos de purgação, os riscos das complicações aumentam ainda mais. As complicações endocrinológicas e metabólicas são muitas, e incluem:  

Da parte cardiovascular pode haver queda da pressão arterial, arritmias, cardiopatias. Há ainda complicações dermatológicas, intestinais, hematológicas (exemplo – anemia), hepáticas, neurológicas e da saúde reprodutiva.

Complicações da bulimia nervosa e transtorno de compulsão alimentar

Podem levar complicações semelhantes da anorexia, mas menos intensas. Relacionadas à purgação temos as complicações cardiovasculares e distúrbios hidroeletrolíticos do potássio, sódio e cloro por conta dos vômitos e diarreia induzidos. Pode haver também complicações relacionadas ao trato digestório, hematológico, renal e bucal.

Se o paciente apresenta obesidade, pode haver complicações relacionadas ao excesso de peso, das quais já comentamos aqui em outros posts na categoria de obesidade.

Tratamento dos transtornos alimentares

O tratamento dos transtornos alimentares tem como base a psicoterapia. Como há comorbidades psiquiátricas associadas de forma frequente, muitos pacientes precisarão de acompanhamento psiquiátrico associado. Profissionais da área de nutrição podem ajudar no tratamento das deficiências e excessos nutricionais.

O endocrinologista poderá avaliar as alterações hormonais e metabólicas decorrente dos transtornos alimentares e definir se há necessidade de tratamento.

O tratamento da anorexia é multiprofissional, inclui profissionais de saúde mental. Pode haver necessidade de internações. Medicações psicotrópicas que levem ao ganho de peso são bem-vindas nessa situação.

Para contornar os problemas hormonais, pode haver necessidade de reposição de hormônios, principalmente hormônios sexuais (estrógenos) para mimetizar a puberdade e proteger a saúde óssea.

Para os transtornos alimentares que cursam com o ganho de peso, medicações para controle da compulsão alimentar podem ser necessárias. No Brasil, a lisdexanfetamina e a associação de bupropiona mais naltrexona são aprovados para uso de transtorno de compulsão alimentar.

Adicionalmente, se há obesidade ou síndrome metabólica, outras medicações antiobesidade e para as complicações metabólicas do excesso de peso podem ser associadas, como a sibutramina, orlistate e os análogos do GLP1, considerando as interações com outras medicações que o paciente utilize o padrão alimentar do paciente ou fenótipo do paciente (dá uma olhada no post do insta que está abaixo).

Para os outros transtornos alimentares, incluindo restritivo-evitativo, pica e ruminação, é recomendado o tratamento do transtorno que está por traz dos comportamentos alimentares alterados. Uma boa avaliação clínica do paciente é fundamental. Frequentemente, a família deve ser envolvida no tratamento.

Considerações finais

Os transtornos alimentares são comuns e vêm aumentando com o passar do tempo. Existem critérios para o diagnóstico bem definidos, mas podem ser que os pacientes não preencham todos os critérios para serem enquadrados em um ou outro transtorno, mas isso não significa que eles não mereçam tratamento. O desafio no diagnóstico é realmente o questionamento profissional dos hábitos alimentares, da purgação, da imagem corporal etc., na entrevista médica.

O endocrinologista pode prescrever medicações direcionadas à compulsão alimentar, medicamentos antiobesidade, repor hormônios que estão deficientes ou ainda contornar as alterações metabólicas decorrentes do excesso de peso.

O tratamento vai ser direcionado à causa-base do problema e profissionais de saúde mental são obrigatórios no cuidado dos transtornos alimentares, que geralmente coexistem com outros transtornos psicológicos ou psiquiátricos, além de outros profissionais de saúde e especialidades médicas.

Referências

Treasure J, Duarte TA, Schmidt U. Eating disorders. Lancet. 2020 Mar 14;395(10227):899-911. doi: 10.1016/S0140-6736(20)30059-3. PMID: 32171414.

Transtornos Alimentares: Diagnóstico e Manejo. Autores – José Carlos Appolinario, Maria Angélica Nunes e Táki Athanássios Cordás. 2022.

Heriseanu AI, Hay P, Corbit L, Touyz S. Grazing in adults with obesity and eating disorders: A systematic review of associated clinical features and meta-analysis of prevalence. Clin Psychol Rev. 2017 Dec;58:16-32. doi: 10.1016/j.cpr.2017.09.004. Epub 2017 Sep 15. PMID: 28988855.

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