Hipoglicemia em pessoas sem diabetes

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O que é hipoglicemia e como é feito o diagnóstico?

Já pensou um carro sem combustível? Ele pifa, não é? Mesmo assim acontece com o nosso organismo sem glicose. Por isso, que há vários sinais de alerta para que se tome uma providência para que a pessoa se alimente rapidamente e evite um “apagão”.

A hipoglicemia é uma situação em que há queda nos níveis de glicose no sangue a patamares baixíssimos. Não é uma doença por si só, mas um sintoma de algum problema que está por trás.

Apesar de ser um problema raro, é muito comum na nossa prática que um paciente chegue com queixa de mal-estar associado outros sintomas como tontura, tremores e ansiedade e que seja logo rotulado (ou se rotule) como tendo hipoglicemia. Mas, para que esse diagnóstico seja feito, são necessários alguns critérios.

Para confirmar o diagnóstico de hipoglicemia clinicamente significativa, é necessário observar preencher três requisitos, conhecidos como Tríade de Whipple:

  1. Que a glicemia esteja baixa, abaixo de 55mg/dL. A glicemia aqui é a do sangue da veia (glicemia plasmática);
  2. Que haja sintomas e sinais de hipoglicemia, tais como: fome, tremores, ansiedade, tontura, sudorese, irritabilidade, confusão mental ou nervosismo, fraqueza. Em casos graves, convulsão e desmaios;
  3. Que esses sintomas e sinais desapareçam após a resolução da hipoglicemia.

A glicose, como já falamos, é o principal combustível do organismo e a insulina tem como seu papel principal o de facilitar a entrada da glicose dentro das células, por isso os sintomas podem afetar diversos órgãos.

Em pessoas com diabetes, a hipoglicemia ocorre quando há um excesso de insulina injetada ou da ingestão indevida ou exagerada de medicamentos que estimulam a liberação de insulina pelo próprio pâncreas do paciente (secretagogos de insulina).

Avaliação inicial da hipoglicemia

Para a avaliação inicial de hipoglicemia, confirmada ou suspeita, observamos se a pessoa está doente ou se aparenta estar saudável. Dessa forma, podemos considerar as seguintes causas, dependendo de cada contexto:

Indivíduo doente ou medicado

Uso de medicações ou drogas

  • insulina ou secretagogos de insulina
  • álcool;
  • outros.

Doenças graves

  • insuficiência hepática, renal ou cardíaca;
  • infecções graves;
  • desnutrição.

Deficiência hormonal

  • cortisol;
  • glucagon e adrenalina (em pacientes com diabetes insulinodependentes);
  • tumores que não são da ilhota pancreática.

A glicose é absorvida através do intestino, é resultado da quebra do glicogênio (glicogenólise) ou ainda da transformação de outros componentes como proteínas e gorduras (gliconeogênese).  O rim e o fígado armazenam glicose em forma de glicogênio, e quando há falência desses órgãos, ficamos sem reservas dessa fonte de energia. O álcool também impede a quebra do glicogênio hepático.

A deficiência de cortisol é comentada em um capítulo separado, bem como a hipoglicemia assintomática, que é uma deficiência da resposta normal da liberação de adrenalina diante de uma hipoglicemia.

Indivíduo aparentemente saudável

Hiperisulinemia endógena (produzida pelo próprio pâncreas)

  • Insulinoma – tumor pancreático produtor de insulina;
  • Desordens funcionais da célula beta (nesidioblastose);
    • hipoglicemia pacreatogênica não-insulinoma;
    • pós cirurgia bariátrica (por by pass gástrico ou Y de Roux e menos frequentemente por Sleeve ou gastrectomia vertical);
  • Hipoglicemia autoimune;
    • anticorpos contra insulina (eles se ligam a insulina causando aumento da glicose e causam hipoglicemia quando eles se desligam dela);
    • anticorpos contra receptor de insulina (enganam a célula como se fossem a própria insulina)
  • Acidental, furtivo ou malicioso. Nos dois últimos casos, o paciente provoca a própria hipoglicemia de maneira arquitetada. Esse diagnóstico é bastante difícil e complicado, já que a pessoa que faz isso não deve estar com a cabeça muito boa.

Tipos de hipoglicemia em pessoas sem diabetes

A hipoglicemia é bem mais comum em pessoas com diabetes, mas pode acontecer também em pessoas que não têm diabetes. Essa última condição era mais rara, mas vem sendo observada cada vez mais frequência devido ao aumento vertiginoso do número de pessoas que fizeram à cirurgia bariátrica.

Para começar a investigação da hipoglicemia, vamos tomando caminhos por algumas bifurcações. A primeira, é o que falamos se o indivíduo é aparentemente saudável ou não. A segunda, é se a hipoglicemia acontece antes ou depois de uma refeição. Pensando nesse ponto, há basicamente dois tipos de hipoglicemia em pessoas sem diabetes:

  1. Hipoglicemia pós-prandial: acontece até quatro horas após uma alimentação;
  2. Hipoglicemia de jejum – que pode estar relacionada a uma doença.

É possível que os sintomas de hipoglicemia estejam presentes na ausência de níveis baixos de glicose, mas se não houver confirmação de glicemia baixa, o diagnóstico de hipoglicemia não pode ser dado. É um caso de “parece, mas não é”.

Possívies causas da hipoglicemia em pessoas sem diabetes

Já detectamos que a hipoglicemia é preferencialmente antes ou depois da refeição. Agora, pensamos nas causas e fatores de risco associados a cada tipo de hipoglicemia.

Hipoglicemia pós-refeição

Também conhecida por hipoglicemia reativa) pode ser causada por:

  • Pré-diabetes ou ter fatores de risco para diabetes – podem levar a exagero na quantidades de liberação de insulina liberada pelo pâncreas. Esse pico de insulina acontece de forma não sincronizadas com o aumento da glicemia após a refeição. A glicemia sobre primeiro e quando ela está descendo, a insulina está aumentando no sangue. Chega uma hora que tem muita insulina para pouca glicose e você já deve concluir o que acontece.  

A existência dessa condição é controversa na literatura, pois raramente se observam baixos níveis de glicose durante a manifestação dos sintomas desconfortáveis sugestivos de hipoglicemia. Para esses casos, há descrita a síndrome pós-prandial, que diz respeito à presença dos sintomas do sistema nervoso simpático (ansiedade, fraqueza, tremor, sudorese ou palpitação) após o teste de tolerância à glicose oral (TTGO) – o mesmo teste que é utilizado para o diagnóstico de diabetes. Essa doença foi desacreditada na literatura, pois evidências científicas não correlacionaram os sintomas descritos pelos pacientes às quedas de glicose e consequente aumento de hormônios como adrenalina e cortisol;

  • Cirurgia no estômago – nesse caso, nós temos a seguinte situação: o estômago está pequeno e isso que faz com que a comida passe rapidamente para o intestino delgado. Essa passagem rápida faz com que sejam secretados hormônios que liberam a insulina a insulina antes da absorção da glicose do alimento. Mais uma vez, há um descompasso.

Como exemplos mais corriqueiros, temos a cirurgia bariátrica com desvio do trânsito alimentar (by pass gátrico) ou sem sleeve (gastrectomia vertical). Na prática, observamos também que só a redução do estômago, sem desvio do trânsito intestinal também causa hipoglicemia.

  • Deficiências raras de enzimas que metabolizam os nutrientes dos alimentos.
  • Insulinoma, que mais comumente causa hipoglicemia em jejum, mas pode causar também no período pós-prandial.

Hipoglicemia de jejum

Na hipoglicemia de jejum, não pensamos em um descompasso entre liberação de insulina e glicemia na refeição, mas sim em problemas na geração, distribuição da glicose dentro do organismo ou da secreção independente (autônoma) de insulina pelo pâncreas.

Pode ser causada por:

  • Medicamentos, tais como salicilatos (contidos em analgésicos), medicamentos contendo sulfas (alguns antibióticos), pentamidina (para tratamento de um tipo de pneumonia), quinidina (para tratamento malária);
  • Consumo de álcool em excesso;
  • Graves doenças do rim, fígado, coração;
  • Baixos níveis de hormônios, tais como cortisol, hormônio do crescimento, glucagon ou adrenalina;
  • Tumores, tais como um tumor em pâncreas que produza muita insulina ou um tumor que produza um hormônio semelhante à insulina, chamado IGF1.

Como diferenciar os tipos de hipoglicemia?

Para saber de que tipo de hipoglicemia se trata cada caso, o médico avalia primeiro se a história clínica é sugestiva de hipoglicemia e os fatores que melhoram e os que pioram os sintomas. Há toda uma sequência de raciocínio clínico.
O valor da glicemia plasmática é fundamental, como falamos no começo. Portanto, testes laboratoriais são sempre solicitados.

O teste a ser realizado para a confirmação da hipoglicemia depende se os sintomas sugestivos de hipoglicemia tenham sido após a refeição (hipoglicemia reativa) ou no jejum.

Teste para o diagnóstico de hipoglicemia reativa (pós-prandial)

Hipoglicemia pós prandial: um teste chamado de teste da refeição mista, que contém carboidratos, proteínas e gorduras deverá ser realizado na suspeita da hipoglicemia reativa; é uma alimentação que simula uma refeição normal e por isso ela é a mais recomendada.

Muitos médicos solicitam a curva glicêmica com a ingestão de glicose com dosagem da glicemia de hora em hora. Importante frisar que  o teste de curva glicêmica prolongada NÃO é recomendado para investigação desse tipo de hipoglicemia.

E por que esse procedimento não é recomendado? Se você já fez uma curva glicêmica com 75g de glicose, viu que a quantidade de açúcar é tão grande que chega a dar náuseas. Essa quantidade de açúcar não é consumida na “vida real” e provavelmente libera quantidades exageradas de insulina, que provocam a hipoglicemia mais para o final do teste da curva glicêmica.

Teste para o diagnóstico de hipoglicemia de jejum

Depois de passado o tempo que chamamos pós-prandial (mais de 5h), pensamos que pode ser uma hipoglicemia de jejum.

Para hipoglicemia de jejum – a medida da glicose deve ser realizada durante jejum, que é classicamente 8h. A maioria dos pacientes que tem algum problema de produção independente de insulina tem uma hipoglicemia nas primeiras 12h de jejum, mas a hipoglicemia pode ser mais tardia, por isso, o teste pode durar até 72 horas. Algumas vezes, é necessário até internar o paciente para flagrar essa hipoglicemia e agir rapidamente para corrigí-la. O jejum não é absoluto, durante o teste, é permitido o consumo de bebidas sem calorias. Ufa!

Em ambos os testes, além da glicemia e da insulina, outras substâncias podem ser dosadas no sangue para auxiliar na investigação da causa da hipoglicemia, como o peptídeo C. Esse fragmento está elevado quando há aumento da secreção de insulina pelo pâncreas.

O peptídeo C é o fragmento resultante da quebra da pro-insulina. A insulina administrada por via subcutânea não contém o peptídeo C e por isso a dosagem do peptídeo C reflete a insulina produzida apenas pelo pâncreas. É útil nos casos em que se desconfia que o paciente esteja sob efeito de uma injeção de insulia ou se tomou algum comprimido para diabetes da classe das sulfonilureias. Há também um teste para detectar vestígios dessa medicação no sangue.

Para saber mais sobre a dosagem de insulina e peptídeo C, confira o post relacionado.

O peptídeo C é o fragmento resultante da quebra da pro-insulina. A insulina subcutânea não contém o peptídeo C e por isso a dosagem do peptídeo C reflete a insulina produzida pelo pâncreas.

Na prática, o uso de aparelhos para medição de glicemia capilar (aqueles testes que as pessoas com diabetes fazem pelo sangue da picada da ponta dos dedos) podem ser utilizados para levantar mais pistas sobre hipoglicemia, mas a confirmação do diagnóstico e investigação da causa são feitos apenas pelos testes de laboratório durante uma hipoglicemia, seja ela de jejum ou pós-refeição.

Como é o tratamento das hipoglicemias?

O tratamento vai depender da causa da hipoglicemia. Por exemplo, se for um tumor produtor de insulina, o tratamento é cirúrgico. Se a causa for por medicamentos, deve-se considerar a troca ou suspensão dos remédios.

Medicações como acarbose, análogos de somatostatina, diazóxido e liraglutida (análogo do GLP1) podem ser consideradas para o tratamento da hipoglicemia pós-prandial. Tem um artigo completo sobre o uso dessas medicações nos pacientes após cirurgia bariátrica, cujo link está nas referências.

Durante a crise de hipoglicemia, o tratamento imediato deve ser feito da mesma forma, independente de qual seja a causa. Se a pessoa estiver acordada, deve ingerir 15 gramas de carboidrato na forma de sucos, glicose pura ou doces.

Algumas dicas para evitar a hipoglicemia pós-prandial

A hipoglicemia pós-refeição está relacionada a um descompasso, um desencontro entre a subida da glicose no sangue e o pico exagerado e tardio da insulina estimulada por esse pico de glicose. Dito isso, a gente orienta que não se coma doces para evitar aquele pico gigante da insulina que vai derrubar a glicose depois.

Em linhas gerais, orientamos:

  • Fracionamento da dieta em pequenas porções a cada duas ou três horas;
  • Variar alimentos, incluindo proteínas e alimentos ricos em fibras;
  • Limitar a quantidade de alimentos doces de alto índice glicêmico para evitar a hipoglicemia reativa.

Uma lembrança importante: as recomendações dietéticas devem ser sempre discutidas com o seu médico e o seu nutricionista.

Considerações finais

Em resumo, a hipoglicemia acontece de forma mais em pessoas sem diabetes, mas hoje nem tanto por conta do aumento das pessoas que fizeram cirurgia bariátrica.

O diagnóstico da hipoglicemia depende da confirmação de níveis baixos de glicose no sangue através de testes apropriados, e o tratamento vai depender da causa da hipoglicemia. Não é tão simples dar esse diagnóstico na prática e a curva glicêmica que usamos para o diagnóstico de diabetes não deve ser utilizada.

Se você está em dúvida se tem ou não tem hipoglicemia, consulte o seu médico de confiança ou procure um endocrinologista para a confirmação do diagnóstico.

Por último, te convido para ver os posts relacionados a esse assunto.

Referências

  1. http://www.diabetes.org.br/para-o-publico/hipoglicemia
  2. http://www.fleury.com.br/medicos/educacao-medica/revista-medica/materias/Pages/endocrinologia-nova-prova-funcional-ajuda-a-estudar-o-metabolismo-da-glicose.aspx
  3. CRYER, P. E.  et al. Evaluation and management of adult hypoglycemic disorders: an Endocrine Society Clinical Practice Guideline. J Clin Endocrinol Metab, v. 94, n. 3, p. 709-28, Mar 2009. ISSN 1945-7197.
  4. http://cursoenarm.net/UPTODATE/contents/mobipreview.htm?3/11/3263/abstract/11
  5. http://www.hormone.org/questions-and-answers/2013/nondiabetic-hypoglycemi
  6. Carpentieri GB, Gonçalves SEAB, Mourad WM, Pinto LGC, Zanella MT. Hypoglycemia post bariatric surgery: drugs with different mechanisms of action to treat a unique disorder. Arch. Endocrinol. Metab. 2023;67(3):442-9.

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