O que é diabetes gestacional?
Toda mulher que surge com a glicemia alta na gravidez é diabética ou está diabética? Neste post vamos explicar o que é diabetes gestacional, como é feito o seu diagnóstico e monitoramento da glicemia.
O diabetes mellitus pode ser dividido em quatro grandes grupos: o diabetes tipo 1, o tipo 2, outros tipos de diabetes (temos o LADA e o MODY como exemplos) e o diabetes mellitus gestacional.
Se uma gestante apresenta altos valores de glicemia, pode ser que ela “seja diabética” (desde antes de estar grávida) e que e esse diabetes tenha sido descoberto ou manifestado na gravidez ou que ela tenha desenvolvido o diabetes gestacional.
Diabetes gestacional é um tipo de diabetes em que o aumento da glicose (hiperglicemia) surge em decorrência da gravidez. Em outras palavras, a mulher que apresenta diabetes gestacional não tinha o diagnóstico de diabetes pelos valores habituais quando não estava grávida ou logo nos exames do pré-natal no início da gravidez. A mulher não diabética, que desenvolveu diabetes gestacional “está diabética”.
O que ocorre na gravidez de diferente e que provoca o aumento da glicose é que diversos hormônios como o lactogênio placentário, o cortisol, o hormônio do crescimento, a progesterona e a prolactina. Ao se elevarem, esses hormônios induzem ao aumento da resistência à ação da insulina.
Para tentar compensar a elevação dos hormônios, no pâncreas há um crescimento das células que produzem insulina; porém, nas mulheres que desenvolvem diabetes gestacional esse mecanismo compensatório não consegue sobrepor a resistência insulínica. Faz-se, então, um diabetes relacionado à condição da gravidez.
Rastreamento e diagnóstico do diabetes gestacional
Quando é muito importante que uma doença seja diagnosticada precocemente, tentamos fazer o diagnóstico nas pessoas assintomáticas. Esse processo se chama rastreamento.
É importante rastrear e controlar o diabetes (principalmente o diabetes tipo 2) antes da gestação. Para o diagnóstico de diabetes fora ou no início da gravidez, são usados os mesmos testes e critérios diagnósticos para população geral.
A importância do diagnóstico e do tratamento da hiperglicemia durante a gestação está na prevenção das complicações decorrentes, tais como: macrossomia (peso ao nascimento > 3,8 a 4,0 Kg), pré-eclâmpsia, polidrâminio (excesso de líquido amniótico) e complicações fetais durante e após o parto e ainda perda fetal.
A hiperglicemia durante a gestação pode levar também a um maior risco do desenvolvimento de obesidade e síndrome metabólica dos filhos dessas mulheres no futuro.
Qual a melhor maneira de fazer o diagnóstico de diabetes gestacional?
Não há uma resposta única para essa pergunta. Vários critérios diagnósticos surgiram ou foram modificados desde o primeiro sugerido por John B. O’Sullivan e Claire Mahan em 1964.
De 1999 a 2013, a Organização Mundial de Saúde (OMS) tinha como critérios diagnósticos de diabetes gestacional os valores de glicemia de jejum iguais ou superiores a 126 mg/dL e/ou glicemia de 2 horas após o teste de sobrecarga oral com 75 gramas de glicose iguais ou maiores que 140mg/dL.
O teste de sobrecarga de glicose é também conhecido como teste de tolerância à glicose oral (TTGO) ou curva glicêmica.
Fora da gravidez, o TTGO é solicitado para medir apenas dois valores – no tempo que chamamos “basal” e 2h após a ingesta da glicose. Já para o diabetes gestacional, é necessário que o TTGO seja solicitado com três valores: basal, após 1h e 2h após a ingesta de quantidade de glicose (75g). O tipo de glicemia avaliada aqui é a glicemia plasmática, aquela feita a partir de amostra de sangue retirada da veia.
Considerando-se esses valores, um estudo brasileiro em 1999 estimou a prevalência do diabetes gestacional em 7,6%. Para resumir a história, o critério mais aceito hoje é o da International Association of Diabetes in Pregnancy Study Group (IADPSG), endossado pela Organização Mundial de Saúde (OMS) e outras organizações. O IASPSG definiu esses critérios baseando-se em um grande estudo, que correlacionou os valores de glicemia às complicações materno-fetais.
De acordo com o IADPSG, o diagnóstico de diabetes gestacional é dado quando qualquer um dos três valores dosados esteja alterado no teste de tolerância à glicose (curva glicêmica). O teste é realizado com 75g de glicose entre a 24 a 28 semana de gestação, conforme tabela 1.
A OMS endossou esses valores com a ressalva de que quando a glicemia for maior ou igual a 200mg/dL, o diagnóstico seria de diabetes descoberto ou manifesto na gestação e não de diabetes gestacional.
Tabela 1. Critérios diagnósticos para o diabetes gestacional conforme o IADPSG
Tempos | IADPSG | OMS |
Basal | ≥ 92 mg/dL | ≥ 92- 125 mg/dL |
1h | ≥ 180 mg/dL | ≥ 180 mg/dL |
2h | ≥ 153 mg/dL | ≥ 153 – 199 mg/dL |
Qual a diferença em usar um ou outro critério diagnóstico?
O critério diagnóstico da IADPSG “baixou a régua” dos valores diagnósticos para o diabetes gestacional. O resultado? Com os novos números do IADPSG, mais mulheres são diagnosticadas com esse problema do que se fossem utilizados os números preconizados pela OMS.
Reavaliando-se os dados do estudo brasileiro do final da década de 90 utilizando os atuais critérios do IADPSG, a prevalência do diabetes gestacional que antes era de 7,6% salta para agora para 18%!
O diabetes gestacional é um exemplo de como a mudança de valores de referência impacta na prevalência de uma doença. Não podemos esquecer do impacto do crescimento da obesidade na elevação dos índices diabetes de forma geral.
Existem outros critérios para diabetes gestacional e até hoje não existe consenso qual o melhor critério a utilizar. Todo o histórico dos critérios diagnósticos está escrito em detalhes arquivo da primeira referência bibliográfica desse texto.
Em um esforço para se chegar a uma padronização no Brasil, em 2017, diversas entidades se reuniram para definir um consenso a ser utilizado aqui no país. Foram elas: Organização Pan-Americana da Saúde/Organização Mundial da Saúde (OPAS/OMS) no Brasil, Ministério da Saúde, Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia (FEBRASGO) e Sociedade Brasileira de Diabetes (SBD).
Toda gestante tem que fazer o exame?
O documento resultante da força tarefa dessas entidade defende que TODAS as mulheres devam ser avaliadas para presença de diabetes no início da gestação pelos critérios da IADPSG/OMS, independente dos fatores de risco clássicos para o diabetes tipo 2 e dos antecedentes obstétricos desfavoráveis ou sugestivos de diabetes gestacionais.
A sugestão do rastreamento universal aumenta a possibilidade do diagnóstico de diabetes gestacional (sobrediagnóstico) e, possivelmente, em paralelo o aumento dos casos de testes falso positivos (quando o teste é positivo e a pessoa não tem a doença).
Lembrando que a hiperglicemia é fator de risco para as complicações e não a própria complicação. Algumas mulheres vão ter problemas, outras não. Deve-se considerar os valores de glicemia dentro de um contexto clínico materno-fetal para que se evite o excesso de tratamento (sobretratamento) .
População de risco para diabetes gestacional
A população de risco é composta por aquelas mulheres em que já se sabe do maior risco de diabetes, que são:
- Idade acima de 45 anos (também para população geral);
- Para diabetes gestacional, o aumento do risco é paralelo à idade.
Em qualquer idade, a presença de pelo menos um dos fatores abaixo aumenta o risco de diabetes
- hipertensão arterial (PA ≥ 140 x 90 mmHg ou tratamento para hipertensão)
- dislipidemia (colesterol HDL < 35 mg/dL ou triglicérides > 250 mg/dL)
- sobrepeso/obesidade (IMC >25 ou 23 kg/m2 em asiáticos)
- história familiar de DM2
- sedentarismo
- doença cardiovascular
- síndrome de ovários policísticos
- outras condições associadas à resistência insulínica (obesidade grave, acantose nigricante)
Também são fatores que enquadram a mulher na população de risco os antecedentes obstétricos:
- história prévia de diabetes gestacional
- história de antecedentes obstétricos desfavoráveis:
- duas ou mais perdas gestacionais prévias
- polidrâmnio
- macrossomia
- óbito fetal/neonatal sem causa determinada
- malformação fetal
Nem sempre é possível fazer o rastreamento em todas as mulheres
O documento final produzido pelo grupo considerou aspectos como viabilidade financeira e disponibilidade técnica do teste proposto. Foi definido como: “Viabilidade financeira e disponibilidade técnica do teste proposto: o método diagnóstico a ser utilizado deve ser o melhor possível dentro da capacidade da região”.
O teste considerado com melhor sensibilidade/especificidade, isto é, como diagnosticar corretamente os doentes e saudáveis conforme o resultado do teste foi o TTGO com 75g, com os valores propostos pela IADPSG e referendados pela OMS em 2013 e pela International Federation of Gynecology and Obstetrics (FIGO) em 2015.”
Quando colocados os critérios de viabilidade financeira e disponibilidade técnicas, dois cenários foram colocados, resumido no nos organogramas 1 e 2.
Rastreamento sem limitações financeiras ou técnicas

Rastreamento com limitação financeira e/ou técnica

Valores de glicemia desejáveis no controle do diabetes gestacional
Diante do diagnóstico de diabetes gestacional, a glicemia capilar (ponta de dedo) deve ser realizada considerando-se os seguintes valores como alvos:
- jejum ≤95mg/dL
- 1h após refeição (pós-prandial) ≤140mg/dL
- 2h após refeição (pós-prandial) ≤120mg/dL
A quantidade de glicemias capilares que devem ser realizadas por dia varia de 4 a 8 vezes, conforme orientação da equipe de saúde.
O Sistema Flash – freestyle libre ®- já foi aprovado em outros países para uso na gestação.
Em um estudo com gestantes, o sistema mostrou boa acurácia e maior comodidade em relação às monitorização com glicemias capilares. No estudo, apenas as medidas pré-prandiais foram analisadas. No Brasil o uso ainda não está aprovado.
A hemoglobina glicada para avaliação do tratamento pode ser também solicitada e o alvo sugerido é até o valor de 6% ou até um ponto percentual acima do valor de referência do método.
Tratamento do diabetes gestacional
Em linhas gerais, o tratamento é feito, inicialmente, com mudança de estilo de vida (dieta e atividade física) e deve ser prontamente estimulado. O objetivo é o controle do ganho de peso e da hiperglicemia. Para controle da glicemia, a quantidade de carboidrato deve ser ajustada, dando preferência a carboidratos complexo e evitando os carboidratos simples. Atividade física deve também ser encorajada.
Quando essas medidas não são suficientes, o tratamento com insulina deve ser instituído como sendo o de primeira linha. As insulinas humanas são seguras para o uso na gravidez.
Dos análogos de insulina, a insulina detemir tem melhor perfil de segurança, mas as pacientes diabéticas que engravidaram em uso de insulina glargina e têm bom controle glicêmico, podem continuar o uso dessa última insulina.
Muito se debateu sobre o uso de antidiabéticos orais glibenclamida e metformina durante a gestação. As duas medicações atravessam a barreira placentária. Evidências científicas não mostraram aumento de eventos adversos materno-fetais com o uso dessas duas medicações, mas ainda permanece a contraindicação durante a gestação nas respectivas bulas dos medicamentos.
Lembrete final
Por último, mas não menos importante:
Toda mulher com o diagnóstico de diabetes gestacional deve ser reavaliada após seis semanas do parto. O teste que deve ser utilizado de preferência para reclassificação após o parto é a curva glicêmica (TTGO).
A alternativa ao TTGO seria a glicemia de jejum. A hemoglobina glicada não foi citada no documento discutido nos parágrafos acima. Em uma publicação anterior, já comentamos sobre a falta de acurácia da hemoglobina glicada para o rastreamento do diabetes.
Após o parto, por definição, a glicemia volta ao normal nas mulheres com diabetes gestacional, e muitas mulheres não são reavaliadas por diversos motivos. Essa mulher que “estava diabética na gestação” tem grande chance de “ser diabética” no futuro, com risco de até sete vezes maior que a população geral e não pode ser perdida de vista.
Referências bibliográficas
- RASTREAMENTO E DIAGNÓSTICO DE DIABETES MELLITUS GESTACIONAL NO BRASIL
- MACK, L. R.; TOMICH, P. G. Gestational Diabetes: Diagnosis, Classification, and Clinical Care. Obstet Gynecol Clin North Am, 44, n. 2, p. 207-217, Jun 2017. ISSN 1558-0474. Disponível em: < https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/28499531 >.
- SCOTT, E. M.; BILOUS, R. W.; KAUTZKY-WILLER, A. Accuracy, User Acceptability, and Safety Evaluation for the FreeStyle Libre Flash Glucose Monitoring System When Used by Pregnant Women with Diabetes. Diabetes Technol Ther, v. 20, n. 3, p. 180-188, 03 2018. ISSN 1557-8593. Disponível em: < https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/29470094 >
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