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Alterações hormonais causadas pelos opioides

Eu espero que aqui não chegue a tal crise pelo abuso de opioides que acometeu a terra do Tio Sam. O uso de opioide aumentou nas últimas décadas em vários países. Apesar do seu uso ter reduzido nos EUA no começo da última década, a mortalidade cresceu muito naquele país. Aqui no Brasil, de 2009 a 2015, o consumo de opioides cresceu quase cinco vezes!! (1).

Todo esse alarme foi antes do início pandemia de covid-19, mas acho que as coisas não devem ter melhorado muito. De certa forma, é bom a gente saber que os opioides ou opiáceos mexem com os hormônios também.

O primeiro registro do uso de ópio foi datado cerca de 4.000 anos antes da era cristã. Ele é obtido a partir da Papaver somniferum, um tipo de papoula. A morfina deu origem a vários compostos, os quais veremos a seguir.

Tipo de opioidesubstância
Natural  Morfina
Codeína  
Semi-sintético  Diamorina (heroina)
Buprenorfina
Dihidrocodeína
Hidromorfona
Oxicodona  
Sintéticos  Alfentanil
Fentanil
Metadona
Pentazocina
Petidina (meperidina)
Tramadol  
Tabela 1. Tipos de opioides mais comumente prescritos

Na medicina, os opioides foram usados inicialmente como analgésicos. Outros tipos de opioides, como a codeína, morfina e metadona, são utilizados para controle da tosse em pacientes com câncer de pulmão. Já a loperamida e a codeína são usadas primariamente para controle da diarreia e síndrome do cólon irritável. Finalmente, a heroína é utilizada como droga recreativa devido aos seus efeitos estimulantes. Certamente, você já ouviu falar de algum deles ou até tomou algum para outro motivo que não tratamento de dor. 

Os opioides causam distúrbios em três sistemas na endocrinologia:

  • Hipotálamo-hipófise-gonadal (ovários e testículos)
  • Hipotálamo-hipófise-adrenal
  • Prolactina

Em todos os pacientes que estejam em uso de corticoide, devemos questionar sobre sintomas nessas três esferas (2).

Figura 1. Investigação inicial do paciente em uso de opiáceos

Eixo hipotálamo-hipotálamo-gônadas

A deficiência dos hormônios sexuais, também chamada de hipogonadismo, é talvez o efeito mais conhecido dos opioides sobre o sistema endócrino.

Muitos hormônios são liberados de forma cíclica em pulsos. O hormônio liberador das gonadotrofinas (GnRH) é produzido no hipotálamo e estimula a liberação de LH (hormônio luteinizante) e em menor grau o FSH (hormônio folículo estimulante). Essas gonadotrofinas estimulam a produção de estrógeno e testosterona, respectivamente, pelos ovários ou testículos. Pode ser que os opioides tenham efeitos diretos sobre os testículos.

O uso a longo prazo (pelo menos um mês) tem efeitos na redução da testosterona em homens.

Um estudo mostrou em mulheres de 18 a 55 anos, o uso de opioides por um tempo maior que três meses foi associado a risco maior de parada da menstruação (amenorreia) e menopausa. Há de se considerar que os pacientes com dor crônica, a presença de outras doenças e medicações e a idade do paciente pode contribuir para a irregularidade menstrual.

Como um ciclo vicioso, as várias consequências do hipogonadismo, incluindo disfunção erétil, impotência, redução da massa muscular em homens; redução dos ciclos menstruais (oligomenorreia) ou cessação dos ciclos (amenorreia) em mulheres; e redução da libido, infertilidade, perda de massa óssea e depressão em ambos os sexos, também podem contribuir para o controle inadequado da dor.

O tratamento para essa complicação, tanto em homens como mulheres, é descontinuar ou reduzir a dose de opiáceos. Se isso não for possível, considerar a reposição dos hormônios sexuais.

Figura 2. Manejo do hipogonadismo hipogonadotrófico secundário ao uso de opioides

Eixo hipotálamo-hipófise-adrenal

Sobre as adrenais, os efeitos dos opioides são menos claros. Essa adrenal é sempre misteriosa!

Os opioides inibem o hormônio hipotalâmico liberador da corticotrofina (CRH) que estimula a liberação do hormônio adrenocorticotrófico (ACTH) e, por sua vez, o cortisol pela adrenal. Parece que também há um efeito direto do opioide sobre a própria adrenal.

O uso por curto período ou prolongadamente podem inibir o eixo hipotálamo-hipófise-adrenal. Para o diagnóstico desse tipo de insuficiência adrenal secundária pode ser necessário o uso de testes de estímulo como o da cortrosina e de tolerância a insulina.
Como sempre, a interpretação dos níveis de cortisol deve ser feita considerando se a pessoa está também em uso de corticoides.

A redução da dose ou suspenção do opioide melhora ou restaura a função desse eixo.

Dúvidas existem se a reposição de corticoide de forma rotineira deve ser feita. Após a suspensão da medicação, a recuperação da adrenal deve ser avaliada com dosagens de cortisol no sangue no período da manhã de forma periódica.

Figura 3. Manejo da insuficiência adrenal causada por opioide

Prolactina

Os opioides estimulam a liberação da prolactina provavelmente por inibição da dopamina. O aumento da prolactina, por sua vez, pode piorar o quadro de hipogonadismo.

Figura 4. Ação dos opioides sobre o hipotálamo e a hipófise, resultando no aumento da prolactina e redução dos gonadotrofinas. Modificado de Wehbeh e col (3)

A redução, descontinuação ou troca do opioide são estratégias sugeridas para redução da prolactina.

Para saber mais sobre a prolactina, tem várias publicações aqui no blog.

Figura 5. Tratamento da hiperprolactinemia induzida por opioides

Metabolismo ósseo

Os prováveis efeitos negativos dos opioides sobre a densidade mineral óssea são pela ação indireta, por conta do hipogonadismo, e diretamente pelo efeito na remodelação óssea. Essas medicações são associadas a maior risco de fratura também por conta dos seus efeitos sedativos que predispõem a quedas.

Além da avaliação hormonal dos eixos anteriormente mencionados, a avaliação do paciente em uso crônico de opioides deve incluir o exame de densitometria óssea.

Considerações finais

Os efeitos dos opioides são mais bem documentados sobre a redução dos hormônios sexuais (hipogonadismo). A insuficiência adrenal também foi documentada, tanto em uso de curto prazo e longo prazo.  Os efeitos sobre os ossos não devem ser esquecidos.

O aumento da prolactina com o uso de opioide é mais bem estabelecido, mas não há dados concretos sobre os outros eixos em que a hipófise está envolvida, como o da tireoide, hormônio do crescimento e ocitocina.

Agora, imagina se Dr. House fosse paciente! Certamente, ele teria que fazer uma avaliação hormonal e óssea. Brincadeiras à parte, o uso de opioide deve ser muito, mas muito criterioso por conta dos efeitos no sistema endócrino e muitos outros mais.  

Referências

  1. Krawczyk N, Greene MC, Zorzanelli R, Bastos FI. Rising Trends of Prescription Opioid Sales in Contemporary Brazil, 2009-2015. Am J Public Health. 2018 May;108(5):666-668. doi: 10.2105/AJPH.2018.304341. Epub 2018 Mar 22. PMID: 29565665; PMCID: PMC5888056.
  • Fountas A, Van Uum S, Karavitaki N. Opioid-induced endocrinopathies. Lancet Diabetes Endocrinol. 2020 Jan;8(1):68-80. doi: 10.1016/S2213-8587(19)30254-2. Epub 2019 Oct 14. PMID: 31624023.
  • Wehbeh L, Dobs AS. Opioids and the Hypothalamic-Pituitary-Gonadal (HPG) Axis. J Clin Endocrinol Metab. 2020 Sep 1;105(9):dgaa417. doi: 10.1210/clinem/dgaa417. PMID: 32770254.

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Insuficiência adrenal primária, secundária e terciária

Já falei algumas vezes que a adrenal ou suprarrenal é uma pequena glândula altamente complexa. Ela se divide em duas partes – córtex e medula- e, por sua vez, o córtex se subdivide em três camadas e cada uma delas produz um tipo diferente de hormônio. Nesse post, vamos conversar sobre os diferentes tipos de insuficiência adrenal (IA), a primária, a secundária e a terciária, entender onde está o defeito de cada tipo para compreender o quadro clínico e os diferentes tratamentos.

Então, vamos por partes!

Regulação da produção dos hormônios adrenais

As adrenais produzem diferentes tipos de corticoides e andrógenos no seu córtex e as catecolaminas na medula. Se não bastasse essa subdivisão e diversidade de hormônios, ainda tem que a regulação da produção dos hormônios das diferentes camadas do córtex da adrenal é feita de forma diversa:

  • a camada glomerulosa do córtex, que produz a aldosterona, é regulada pelo rim através do sistema renina-angiotensina-aldosterona (SRAA)
  • a camada fasciculada e a reticular, produtoras de cortisol e dos andrógenos adrenais, respectivamente, são reguladas pela hipófise através do ACTH (hormônio adrenocorticotrófico).

Ainda falano de regulação, temosque o hipotálamo libera o CRH – corticotropin-releasing hormone – hormonio responsável por estimular a hipófise a produzir ACTH, que por sua vez estimula o córtex adrenal. Completa-se dessa forma o famoso eixo hipotálamo-hipófise-adrenal (HHA).

Já a medula adrenal é regulada pelo sistema nervoso simpático.

Figura 1. Regulação da produção dos hormônios adrenais.

Esse entendimento preliminar é importante para compreender os diferentes quadros clínicos dos três tipos de insuficiência adrenal: a primária, a secundária e a terciária.

Vamos deixar de lado aqui a medula adrenal e focarmos nos hormônios corticais e iniciar do que é mais comum e até chegar no mais raro.

Insuficiência adrenal terciária e “fadiga adrenal”

A insuficiência adrenal terciária é causada pela retirada abrupta de corticoide exógeno (aquele que é tomado em forma de comprimido ou injeção). Quando tomado por muito tempo, e ainda dependendo da dose, a retirada ou suspensão do corticoide, sem que seja realizado um desmame, provoca sintomas de insuficiência adrenal.

Isso porque os corticoides fazem o trabalho do próprio córtex adrenal, e o hipotálamo e hipófise entendem que não precisam estimular a glândula e param de secretar o CRH e o ACTH (hormônio adrenocorticotrófico), respectivamente. Temos como resultado dessa inibição do eixo a falta de estímulo sobre o córtex para produção de o cortisol e os andrógenos.

Em outras palavras, a ingestão ou administração de corticoides em altas doses ou por muito tempo inibem o eixo hipotálamo-hipófise-adrenal. Uma dose de 5mg de prednisona por três semanas ou mais pode levar ao quadro de insuficiência adrenal terciária.

Além dos corticoides, os opioides, medicamentos para dor derivados da morfina, também podem causar insuficiência adrenal. Foi observado que de 10 a 20% das pessoas que tomam uma dose de opioide equivalente a 100mg de morfina por dia apresentam sintomas de insuficiência adrenal terciária.

Com a suspensão abrupta do corticoide exógeno, as adrenais não “despertam” imediatamente, e temos, no fim das contas, uma deficiência de hormônios circulantes. É por esse e outros motivos que a retirada do corticoide tem que seguir um plano de desmame para dar tempo das adrenais despertarem da sua “hibernação”.

Às vezes, é muito difícil retirar o corticoide, pois se o plano não for bem desenhado pelo médico e adequadamente realizado pelo paciente, o resultado é que o paciente passa muito mal. Para evitar os indesejáveis sintomas de insuficiência adrenal, o paciente volta a tomar as doses altas que estava tomando outrora.

Se o paciente não tiver nenhum problema renal, no quadro clínico da insuficiência adrenal terciária, vamos ter deficiência de cortisol e de andrógenos apenas, já que o rim está estimulando a produção da aldosterona normalmente. Isso também acontece porque a adrenal, que não tem um problema primário (da própria glândula), responde normalmente ao estímulo da renina.

Regulação da produção dos hormônios adrenais.
Figura 2. Insuficiência adrenal terciária – destruição inibição do eixo HHA

Quem toma corticoide para tratar “fadiga adrenal” pode correr o risco de, ao retirar o corticoide de forma abrupta, desenvolver uma insuficiência adrenal terciária de verdade. Aí, sim, vai ter motivo de sentir fadiga, conforme vamos ver no quadro clínico no próximo post.

A insuficiência adrenal terciária pode ser também por destruição do hipotálamo, que é muito mais rara do que pelo uso recente de corticoide. Nesse caso, o paciente vai ter sintomas neurológicos ou história prévia de cirurgias para retirada de tumores na região do hipotálamo ou nos seus arredores.

Tem um post específico sobre a Insuficiência Adrenal Induzida por corticoide.

Insuficiência adrenal secundária

A insuficiência adrenal secundária tem o quadro clínico muito parecido com a insuficiência adrenal terciária.

Dessa vez, não há um problema funcional do hipotálamo-hipófise, mas um problema estrutural da hipófise. Neste caso, há uma destruição da célula corticotrófica da pituitária que resulta em deficiência de ACTH, que pode ser isolada ou associada a deficiência de outros hormônios hipofisários, como o hormônio de crescimento (GH), o hormônio tireotrófico (TSH), entre outros hormônios hipofisários.

A causa mais comum são tumores hipofisários, na sua vizinhança ou decorrente do tratamento cirúrgico ou radioterápico desses tumores.

.Figura 3 Insuficiência adrenal secundária por destruição da hipófise

Como o quadro clínico é semelhante, a gente vai saber se é secundário ou terciário perguntando se o paciente fez uso de corticoide recentemente (apontam para IA terciária), além de sintomas de deficiência de outros hormônios hipofisários, sintomas neurológicos específicos e história de cirurgia na região da hipófise (apontam para IA secundária). Outra forma de descobrir é fazendo um exame de imagem quando não temos a informação do uso de corticoide ou essa informação não é confiável.

Insuficiência adrenal primária

Aqui o problema está na destruição ou defeito na produção de hormônios do córtex da adrenal.

A forma congênita mais comum de insuficiência adrenal primária é a hiperplasia adrenal congênita. Na forma mais comum dessa doença genética, que é a da deficiência da enzima 21 hidroxilase, há deficiência de mineralocorticoide e de glicocorticoide com excesso de andrógenos. Se você quiser saber mais sobre esse defeito genético, tem um post específico sobre esse assunto.

A partir de agora, vamos falar especificamente da IA primária adquirida. A forma de IA primária adquirida mais comum é decorrente da uma manifestação autoimune.

A IA primária adquirida é também conhecida como Doença de Addison. Nessa doença, o corpo produz anticorpo contra a enzima 21 hidroxilase e destrói o córtex adrenal. Assim sendo, não há produção de nenhum hormônio cortical, nem aldosterona, nem cortisol e nem os andrógenos.

A doença de Addison pode vir associada a outras doenças autoimunes como tireoidite de Hashimoto, Doença de Graves, diabetes tipo 1, vitiligo, hipoparatiroidismo autoimune etc. Eu precisaria de um post isolado para falar das síndromes autoimunes das quais a insuficiência adrenal primária faz parte.

Se por um lado, a insuficiência adrenal primária é a mais complicada, por outro lado, ela é mais rara que as insuficiências adrenais secundária e terciária. O quadro clínico difere dos anteriores por ter queda mais intensa da pressão arterial e alterações no metabolismo dos minerais sódio e potássio. De forma inversa ao hiperaldosteronismo primário, na IA primária, vamos ver a elevação do potássio e redução do sódio no sangue.

Figura 4. Insuficiência adrenal primária – destruição do córtex adrenal

Outra pista clínica que vai indicar para insuficiência adrenal primária é o escurecimento da pele. Na tentativa de “ressuscitar” a adrenal, a hipófise aumenta a produção de ACTH.

O ACTH é uma molécula que dá origem a outra, a α-melanocortina ou α-MSH, que estimula as células produtoras de melanina na pele. Todas essas moléculas são derivadas da pró-opiomelanocortina, uma molécula bem maior, que também dá origem à beta-endorfina, como na figura abaixo.

Figura 5. AUMENTO DA PRODUÇÃO DE ACTH E MSH A PARTIR DA MOLÉCULA PONC.
Foto 1. Paciente da esquerda tem a pele escurecida devido à Doença de Addison

Considerações finais

A insuficiência adrenal (IA) pela retirada ou suspensão abrupta de corticoide exógeno (comprimido e injeção) é a mais frequente. Já os tipos de IA causadas por algum tipo de tumor ou doença nos órgãos envolvidos na produção dos hormônios adrenais são mais raras.

O engraçado é que as doses para tratar a “fadiga adrenal” podem até causas IA terciária dependendo do tempo de uso. Ainda falando no uso inadequado, não faz muito tempo que o uso de dexametasona foi disseminado para o tratamento de formas leves covid e, com certeza, muita gente passou mal por aí depois que parou de tomar o remédio.

No próximo post, vou falar sobre diagnóstico e tratamento. Resolvi dividir o tema para não ficar um post muito extenso. Mas se você está curioso, pode baixar a versão completa desse texto em PDF de forma gratuita.

Referência bibliográfica

  1. Husebye ES, Pearce SH, Krone NP, Kämpe O. Adrenal insufficiency. Lancet. 2021 Feb 13;397(10274):613-629. doi: 10.1016/S0140-6736(21)00136

Os posts em PDF estão sendo revistos e atualizados. Em breve, estarão sendo disponibilizados.

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