Hiperplasia adrenal congênita – Deficiência da 21 hidroxilase

Vídeo do YouTube
Live sobre hiperplasia adrenal congênita

O que é a hiperplasia adrenal congênita?

Quando eu era residente de endocrinologia, confesso que entender as doenças relacionadas com a produção dos hormônios esteroides (esteroidogênese) na glândula adrenal era uma tarefa muito difícil. Isso porque esses hormônos são muito parecidos entre si e as etapas da sua produção envolvem várias enzimas diferentes. Dependendo em que enzima estava o defeito, o quadro clínico era muitíssimo diferente das enzimas vizinhas.

A ideia é tentar deixar esse assunto complexo um pouco mais simples. Existem vários defeitos enzimáticos, mas o mais comum da produção hormonal é o defeito na enzima 21 hidroxilase. Esse tipo de defeito, junto com alguns outros da esteroidogênese, levam ao aumento do tecido da adrenal (hiperplasia). Como os defeitos das enzimas são causados por mutações genéticas que podem passar de geração a geração essa doença é chamada de hiperplasia adrenal congênita (HAC). A sua frequência na população brasileira varia de 1:10.000 a 1:18.000 nascidos vivos.

Hiperplasia adrenal congênita (HAC) é o termo utilizado para caracterizar um conjunto
de doenças, de herança autossômica recessiva, potencialmente letais, resultantes da deficiência de uma das enzimas responsáveis pela síntese de cortisol nas glândulas adrenais

Trecho retirado de Hiperplasia Adrenal Congênita – Triagem Neonatal

Para que a HAC se manifeste, deve haver defeito nos dois exemplares do gene CYP21 que codificam a enzima 21 hidroxilase (herança autossômica recessiva).

Essa doença tem um enorme interesse para pediatria, pois pode ser causa de desidratação grave, potencialmente fatal, virilização (masculinização) da genitália externa feminina ou genitália ambígua. Na criança, pode levar aos quadros de puberdade precoce nos dois sexos. O seu diagnóstico precoce é tão importante que sua triagem está inclusa no teste do pezinho.

Nas mulheres adultas, a HAC de forma leve pode causar quadro clínico semelhante à Síndrome dos Ovários Policísticos, com sinais de excesso de hormônio masculino e infertilidade.

Para entender como esse aumento da produção de hormônios masculinos acontece, vale a pena passar pela famosa esteroidogênese adrenal.

Esteroidogênese adrenal

Os hormônios esteroides são uma série de compostos produzidos a partir do colesterol. A adrenal e as gônadas compartilham parte das enzimas dos hormônios esteroides. Vamos aqui nos focar na produção dos hormônios da adrenal: o córtex adrenal produz três tipos de hormônios diferentes, em camadas diferente do córtex da glândula, conforme falamos em um post passado, os mineralocorticoides, os glicocorticoides e os andrógenos.

Hormônios produzidos pela glândula adrenal
Adrenal com suas duas regiões (córtex e medula) e seus respectivos hormônios
Esteroidogênese adrenal. O DHEA e androstenediona são precursores dos hormônios sexuais (testosterona e estrona).

A produção hormonal é como se fosse uma cascata que começa com o colesterol, vai caindo em etapas (sequência de enzimas) e resultam em três poços separados. Esses poços seriam os produtos finais da cascata: a aldosterona, o cortisol e a androstenediona. Essa última serve como precursor ou “ingrediente” para hormônios sexuais masculinos mais potentes, como é o caso da testosterona, fora da adrenal.

Cascata da esteroidogênese adrenal e os hormônios adrenais finais
Esteroidogênese sem bloqueio (sem deficiência enzimática)

Deficiência da 21 hidroxilase e hiperplasia adrenal

Se há um bloqueio da esteroidogênese logo no início, é como se a fonte de água da cascata fosse interrompida, não formasse cascata e tampouco os poços. Mas se o bloqueio for mais em baixo, o volume de água pode ser desviado para um único poço.

Se fizermos uma analogia, a deficiência da 21 hidroxilase (que está em um nível mais baixo da cascata da esteoidogênese) desvia a produção dos hormônios adrenais para produção predominantemente de andrógenos. Esse desvio de fluxo reduz a quantidade de aldosterona e cortisol e aumenta a quantidade de andrógenos. Quanto mais ineficiente a enzima, maior o bloqueio da produção de cortisol e maior a produção de andrógenos. A deficiência da 21 hidroxilase é uma doença genética que tem um espectro bastante amplo.

A sua frequência na população brasileira varia de 1:10.000 a 1:18.000 nascidos vivos.

A redução do cortisol é percebida pela hipófise que, na tentativa de aumentar a produção desse glicocorticoide, eleva a secreção do hormônio que estimula o córtex da adrenal – o ACTH. Este, por sua vez, faz com que o tecido da adrenal cresça (hiperplasia) na tentativa de produzir mais cortisol, só que a produção vai ser parcialmente desviada para produção de andrógenos. É um ciclo vicioso.

Quadro clínico da hiperplasia adrenal congênita

Conceitualmente, a HAC é dividida em duas grandes categorias: a forma clássica e a forma não clássica. A forma clássica é mais exuberante e é subdividida em perdedora de sal e virilizantes simples.

Se a deficiência da 21 hidroxilase for quase completa, teremos a forma mais grave da hiperplasia adrenal congênita desse tipo (a perdedora de sal). O quadro clínico é decorrente da falta de cortisol e aldosterona (perda de sódio e pressão baixa) e virilização da genitália externa feminina (a menina pode nascer com os genitais externos masculinos ou a genitália atípica). O defeito enzimático grave pode ser fatal se não for diagnosticado a tempo. No bloqueio enzimático moderado, temos o quadro de virilização apenas, sem “perda de sal” (virilizantes simples).

A forma não clássica é a forma leve de HAC que pode ser diagnosticada mais tardiamente. A produção de cortisol é quase normal, mas ainda há um aumento da produção de andrógenos. Pode ser diagnosticada apenas na infância por um quadro de puberdade precoce ou na idade adulta, simulando a Síndrome dos Ovários Policísticos.

Essa doença tem uma boa correlação entre o defeito do gene, a deficiência da enzima e a gravidade do quadro clínico. Quanto mais grave a deficiência de 21 hidroxilase, mais baixa a produção de cortisol e mais alta a produção de andrógenos, que resulta no espectro de HAC perdedora de sal à forma não-clássica.

Modificado de Costa-Barbosa (2)

Diagnóstico da Hiperplasia Adrenal Congênita

O diagnóstico é feito pela dosagem do hormônio 17α hidroxiprogesterona (17OHP), que está uma etapa acima do bloqueio da 21 hidroxilase. Quanto maior o boqueio enzimático, maiores os níveis de 17OHP . Na analogia da cascata, é como se a 17OHP aumentasse de volume por ser um pequeno poço parcialmente represado. O diagnóstico pode ser feito também pela avaliação das mutações no gene que produz (codifica) a enzima 21α hidroxilase, já realizado em alguns laboratórios.

Algumas vezes, o aumento da 17OHP não é tão claro para definir o diagnóstico. A gente tem que estimular mais um pouco a adrenal para que o bloqueio se revele. Nesse teste, o ACTH é administrado na veia para que se aumente a produção dos hormônios do córtex adrenal e fazer aparecer esse bloqueio com mais clareza. É como se fizéssemos chover na fonte para aumentar o volume da cascata e verificar se há diferença nos poços se houver bloqueio.

Diagnóstico laboratorial da HAC pela deficiência da 21 hidroxilase (2)

Tratamento da Hiperplasia Adrenal Congênita

O tratamento é feito visando reduzir o estímulo da hipófise para adrenal e, consequentemente o excesso de produção de andrógenos. E como isso é feito? Administrando um ou mais tipos de corticoides. Essa modalidade de tratamento é na verdade uma reposição, pois o cortisol produzido pela adrenal é insuficiente para normalizar a secreção e ACTH. A normalização dos níveis de cortisol reduz o ACTH e com isso o estímulo sobre a adrenal. Isso deve ser feito com a mínima dose de corticoide necessária.

Para endocrinologia feminina, nos casos em que há suspeita da hiperplasia adrenal congênita diante de uma mulher com Síndrome do Ovário Policísticos, é interessante dosar a 17OHP na primeira fase do ciclo menstrual e pela manhã. O quadro clínico é semelhante à SOP, decorrente do excesso de hormônios masculinos (excesso de pelos, acne, oleosidade, etc) irregularidade menstrual e infertilidade. Valores aumentados de 17OHP podem sugerir que seja a hiperplasia adrenal congênita forma não clássica e o tratamento deve ser reposição de corticoide em baixa dose, se o objetivo for engravidar. As pílulas anticoncepcionais podem ser utilizadas no controle dos sintomas do aumento dos hormônios masculinos se mulher não deseja engravidar.

O objetivo do tratamento é na verdade normalizar (ou quase) a androstenediona e a testosterona na forma não clássica. A 17OHP pode ser sempre mais alta que os valores de referência da normalidade, mas ela o marcador do problema, o problema mesmo é o aumento da testosterona. Se com o tratamento, a 17OHP estiver normal, indica que a dose de corticoide está em excesso.

Existe uma série de particularidades para o tratamento de cada forma, em cada sexo e em cada idade. As questões mais técnicas podem ser consultadas na literatura sugerida no fim do texto.

Considerações finais

Talvez os endocrinologistas pediátricos tenham mais intimidade com essa doença que os endocrinologistas de adultos, já que são eles que diagnosticam as formas clássicas mais graves no berçário e tratam de puberdade precoce. Para nós, endocrinologistas de adultos e para o os ginecologistas que vemos mulheres com queixas de sinais de excesso de hormônio masculino e infertilidade, nós não podemos esquecer da forma não clássica da hiperplasia adrenal congênita como diagnóstico diferencial da Síndrome dos Ovários Policísticos.

Referências

  1. Guia Prático da Sociedade Brasileira de Pediatria – Hiperplasia Adrenal Congênita – triagem neonatal.
  2. Costa-Barbosa, Flávia A., Telles-Silveira, Mariana, & Kater, Claudio E.. (2014). Hiperplasia adrenal congênita em mulheres adultas: manejo de antigos e novos desafios. Arquivos Brasileiros de Endocrinologia & Metabologia58(2), 124-131. https://doi.org/10.1590/0004-2730000002987
  3. Speiser, Phyllis W et al. “Congenital Adrenal Hyperplasia Due to Steroid 21-Hydroxylase Deficiency: An Endocrine Society Clinical Practice Guideline.” The Journal of clinical endocrinology and metabolism vol. 103,11 (2018): 4043-4088. doi:10.1210/jc.2018-01865

Se você gostou da leitura, não deixe curtir e de compartilhar o conteúdo.

Para receber em primeira mão as publicações, você pode se increver no blog ou me acompanhar pelas redes sociais. Os links estão no rodapé dessa página.

Espero ver você mais vezes!

Um forte abraço,

Suzana

Deixe uma resposta

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.