Quando a gente dá um hormônio para uma pessoa que não tem deficiência, essa pessoa pode desenvolver deficiência da glândula que produz esse hormônio específico, pois a glândula fica em repouso uma já tem um comprimido, ou uma injeção, ou mesmo um aerossol fazendo o papel dela. Um dos principais exemplos que temos na endocrinologia de glândula que entra em repouso e até atrofia é que o uso prolongado de glicocorticoides (hidrocortisona, prednisona, dexametasona etc.) pode resultar na insuficiência adrenal induzida ou causada por corticoide. Esse é o tema desse post.
Os corticoides são usados como medicações anti-inflamatórias e imunossupressoras para várias doenças, como asma, artrites, doenças autoimunes e até alguns tipos de câncer. Ótimos analgésicos, eles dão também aquele “up”, aquela subida na energia da pessoa. É por essas e outras que surgem até doenças que não existem, como a “fadiga adrenal” para justificar o uso de corticoides sem comprovação científica.
As pessoas que tomam corticoide há muito tempo podem inclusive ter uma atrofia da parte da adrenal que produz esse tipo de hormônio, no caso do glicocorticoide, do córtex adrenal. Tirar ou reduzir o corticoide é, por muitas vezes, um trabalho hercúleo e talvez impossível, mas os endocrinologistas tentam, pois o excesso de corticoide é bastante danoso que o post da Síndrome de Cushing aqui no blog detalha bem.
A insuficiência adrenal causada pelo corticoide funciona como se houvesse um problema da hipófise que reflete na adrenal. Lembrando que nesse caso, não há deficiência de mineralocorticoide (aldosterona).
Muitas vezes, não é mesmo possível tirar o corticoide, pois pode haver uma piora do que chamamos de “doença de base”, que é aquela doença para o qual o corticoide foi prescrito primariamente.
Vamos pensar em uma pessoa que tem artrite reumatoide (inflamação nas juntas) e controlou a dor e a inflamação das suas articulações com corticoide e ficou bem, sem dor, sem inchaço etc. Mas por conta do uso prolongado do corticoide, essa pessoa ficou diabética e hipertensa e ganhou peso. Para resolver o diabetes e a hipertensão e a obesidade, a lógica seria retirar o corticoide. Ao tentar reduzir ou tirar a dose do corticoide, não só os sintomas da insuficiência adrenal vão aparecer, mas também podem ressurgir os sintomas da artrite reumatoide.
Se os sintomas da doença de base não ressurgirem, fica ainda o desafio da retirada do corticoide e torcer para que a adrenal “desperte” do repouso em que estava. Se o corpo ficar sem corticoide, seja por falta da medicação ou pela falta da produção, pode chegar a ter um quadro de crise adrenal. Esse quadro pode ser fatal. Acerca da insuficiência adrenal (IA), eu recomendo dar uma olhada em outro post desse blog.
Nesse texto, o foco será sobre os perfis de paciente com maior e menor risco de desenvolverem insuficiência adrenal induzida por corticoide, como fazer a investigação durante a tentativa de retirada de corticoide para cada perfil de paciente, conforme ele estiver no muito alto, alto, moderado ou baixo risco da insuficiência desse hormônio.
O risco de o paciente desenvolver um quadro de insuficiência adrenal depende de vários aspectos como tempo de uso, via de administração e potência do corticoide.
Aqui, a potência vai ser usada como equivalente das doses da prednisona (que é igual à da prednisolona, como utilizada no texto de referência). Abaixo, temos o quadro dos corticoides mais e menos potentes.
Grupos de risco para desenvolvimento da insuficiência adrenal causada por corticoide
Dependendo da história, características clínicas, tipo de corticoide, tempo de uso e via de administração, os pacientes podem ter muito alto risco até baixo risco de desenvolverem um quadro de insuficiência e crise adrenal se o corticoide for suspenso. Conforme essas características, temos:
MUITO ALTO RISCO
- Paciente com história de uso de corticoides e atualmente com crise adrenal;
- Pacientes com história de uso de corticoides e com aparência de Síndrome de Cushing.
ALTO RISCO
Para qualquer via de corticoide utilizada
- Pacientes com história recente de corticoide exógeno e se apresentando com sinais sintomas sugestivos de insuficiência adrenal (excluindo-se crise adrenal e aparência cushingoide);
- Uso concomitante de fortes inibidores da CYP3A4 (medicações que inibem o metabolismo do corticoide e fazem com que este circule mais tempo).
Corticoides sistêmicos (inclui administração oral, intravenoso ou intramuscular)
- Tratamento diário com dose (de corticoide) equivalente à prednisona (PED) ≥ 5mg por > 4 semanas (adultos);
- Uso prolongado de administração noturna (bedtime).
Corticoides inalatórios
- uso de altas doses (independente da duração do tratamento). Risco maior com propionato de fluticasona
- tratamento contínuo por > 12 meses (independente da dose utilizada);
- uso concomitante de qualquer outro corticoide.
Corticoides intra-articulares
- Não há fortes evidências científicas, mas a supressão do eixo hipotálamo-hipófise-adrenal é comum por mais de dois meses após injeção.
RISCO MODERADO
Qualquer via de administração
- Paciente sem sintomas que usaram corticoide por tempo prolongado e suspenderam seu uso há menos de um ano (especialmente se o corticoide foi utilizado por curtos períodos).
Corticoides sistêmicos (inclui administração oral, intravenoso ou intramuscular)
- Tratamento diário com dose de corticoide equivalente à prednisona (PED) ≥ 5mg por 2- 4 semanas (adultos);
- Tratamento diário com PED < 5mg ao dia (adultos);
- Múltiplos tratamentos com corticoide diário, cada um com duração < 2 semanas.
Corticoide inalatório
- Uso de dose baixa ou intermediária por 6-12 meses.
BAIXO RISCO
Qualquer via de administração
- Paciente sem sintomas que descontinuaram o uso de corticoide de uso contínuo há> 1 ano.
Corticoides sistêmicos (inclui administração oral, intravenoso ou intramuscular)
- Tratamento isolado com dose diária de duração < 2 semanas (qualquer dose);
- Pulsoterapia (qualquer dose). Pulsoterapia é um tratamento em que se faz altíssimas doses de corticoide, geralmente intravenosa, em poucos dias.
Corticoide inalatório
- Uso de dose baixa ou intermediária por < 6 meses.
Avaliação da insuficiência adrenal causada por corticoide
No meio do caminho para a suspensão, testes podem ser necessários para saber se avançamos ou recuamos na tentativa. Os valores dos testes cortisol podem variar conforme a diretriz que o serviço adota do fabricante de kit laboratorial.
Se o paciente for de muito alto risco, não arrisque tirar o corticoide de forma abrupta de maneira alguma! É certo que ele vai evoluir com crise adrenal. Esses pacientes vão precisar de dose de corticoide fisiológica de reposição, que é correspondente a 5mg de prednisona ao dia.
No caso de pacientes de alto risco, os corticoides sistêmicos podem ser reduzidos (desmame) até a dose fisiológica. A dosagem de cortisol no sangue pode ser feita após 24h da última dose de corticoide e, conforme o resultado, o paciente pode ter o diagnóstico de insuficiência adrenal, suspeita ou exclusão desse diagnóstico.
No paciente com risco moderado, pode-se fazer o teste para avaliar o eixo de forma mais precoce, sem desmame prévio da dose.
Pacientes de baixo risco, não é necessário realizar testes hormonais de forma rotineira a menos que haja suspeita de insuficiência adrenal causada pelo corticoide.
Uma sugestão de manejo desses pacientes se encontra abaixo. Com certeza, essa é uma sugestão e deve ser adaptada para cada caso.

Considerações finais
O corticoide é uma faca de dois gumes: ele pode melhorar uma doença e causar outra. Pior ainda pode ser a falta dele quando nos referimos às situações em que o paciente fazia ou faz uso do corticoide para outras doenças que não a insuficiência adrenal.
Quem tem a insuficiência adrenal por outras causas, como autoimune na Doença de Addison, deficiência dos hormônios por problemas hipófise ou hipotálamo ou ainda usa para Hiperplasia Adrenal Congênita, não se deve nem sequer pensar suspensão do glicocorticoide. Os ajustes são feitos para que o efeito da reposição não seja suprafisiológico.
Dito tudo isso, não se deve ter pressa, mas não se pode ficar acomodado na tentativa de reduzir ou suspender o corticoide quando for possível. O alinhamento entre o endocrinologista e a o médico que cuida da doença que levou a pessoa usar o corticoide é fundamental quando se pensa nessa possibilidade.
Em um post futuro, falarei mais sobre as estratégias de desmame do corticoide.
Até lá!
Referência
Prete A, Bancos I. Glucocorticoid induced adrenal insufficiency. BMJ. 2021 Jul 12;374:n1380. doi: 10.1136/bmj.n1380. Erratum in: BMJ. 2021 Aug 2;374:n1936. PMID: 34253540
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