Arquivo da categoria: Endocrinologia

Problemas endocrinológicos do tratamento do câncer

Vídeo Youtube

inibidores de checkpoint imunológicos e endocrinopatias

Endocrinologia e oncologia têm uma nova interface: as complicações endocrinológicas dos inibidores de checkpoint. Essas medicações revolucionaram a oncologia nas últimas duas décadas, aumentando a sobrevida de muitos pacientes com câncer.

Os inibidores de checkpoint liberam o sistema imunológico a atacarem as células cancerígenas combatendo o tumor, mas também liberam autoimunidade e inflamação contra o sistema endócrino.

Os eventos adversos mais comuns sobre as glândulas são corriqueiros da prática dos endocrinologistas, tais como a tireoidite autoimune (tireoidite de Hashimoto) e o diabetes tipo 1, mas outras são muito raras, como a hipofisite e insuficiência adrenal primária. Esses eventos adversos podem ser leves a gravíssimos.

A ideia desse texto é conversar acerca da toxicidade dos inibidores de checkpoints sobre as glândulas endócrinas, fisiopatologia, diagnóstico e tratamento. Os links que aparecerem durante o texto levam aos posts específicos de cada complicação endócrina.  

O que são os inibidores dos checkpoints?

Os inibidores de checkpoint são anticorpos monoclonais amplamente utilizados no tratamento de diversos tipos de câncer na atualidade.

Para quem não está familiarizado com essa classe de droga, os inibidores de checkpoint agem em duas vias de sinalização relacionadas à ativação da célula T do sistema imunológico: o CTLA-4, PD-1 e seu ligante, PD-L1. 

O CTLA-4 (cytotoxic T lymphocyte antigen-4) naturalmente bloqueia a ativação e proliferação das células T do sistema imunológico; O PD-1 (programmed cell death-1) e seu ligante PD-L1 sinergicamente com o CTLA-4 reduzem a proliferação e funcionamento das células T além da produção de citocinas. Essas moléculas são pontos de controle ou verificação (checkpoints) promovem a tolerância imunológica e previnem a autoimunidade.

O bloqueio do CTLA-4 em conjunto ou não com bloqueio do PD-1 e PD-L1 destravam esse controle imunológico e permitem o ataque autoimune contra as células cancerígenas. Só que a inibição desse sistema destrava também a autoimunidade e a inflamação contra outras células não cancerígenas como pele, intestino, fígado e glândulas endócrinas.

Os mecanismos de ação dos inibidores de checkpoint estão representados na Figura 1.

Figura 1. Mecanismos de ação dos inibidores de checkpoint

O ipilimumab foi primeiro inibidor de checkpoint aprovado para o tratamento de melanoma em 2011. Esse tipo de tratamento melhorou substancialmente a sobrevida dos pacientes. Os inibidores de PD-1 e PD-L1 demostraram eficácia maior que a primeira classe e hoje é aprovado em cerca de 17 diferentes tipos de câncer, incluindo pele, rim, pulmão, bexiga, trato digestivo alto e cabeça e pescoço.

Em alguns tipos de câncer, é feita a combinação do inibidor de CTLA-4 e PD-1/PDL-1, o que aumenta a eficácia, mas também os efeitos colaterais.

As principais medicações de cada classe estão descritas na Tabela 1.

DrogaClasse
IpilimumabeAnti-CTLA-4
Nivolumabe
Pembrolizumabe
Cemiplimabe
Anti-PD-1
Atezolizumabe
Avelumabe
Durvalumabe
Anti-PD-L1
Tabela 1. Representantes dos inibidores de checkpoint e suas respectivas classes

Toxicidade sobre o sistema endócrino dos inibidores de checkpoint

Os efeitos adversos que recaem sobre o sistema endócrino são diferentes em comparação aos outros sistemas. A seguir, algumas diferenças:

Primeiro, eles resultam em dano permanente e irreversível sobre as glândulas;

Segundo, para o tratamento dos efeitos colaterais, os dois principais pilares do tratamento (descontinuação da medicação ou corticoides em altas doses) não revertem o quadro autoimune.

Terceiro, o tratamento de reposição hormonal é o tratamento padrão e costuma ser definitivo.

Agora, vamos ver com mais detalhes principais as glândulas atingidas por essas novas medicações.

Tireoide

A tireoide é a glândula mais afetada. Efeitos colaterais acontecem em 10% dos pacientes tratados com inibidores do PD-1/PD-L1 em monoterapia até 15-20% daqueles tratados com combinação de anti-PD-1/CTLA-4. O hipotireoidismo acontece quase sempre e pode ser precedido de uma fase de tireoidite em 30-40% dos casos. Doença de Graves raramente acontece.

Pacientes com autoimunidade prévia são mais suscetíveis ao hipotireoidismo.

O diagnóstico é geralmente feito após o início da terapia com os inibidores de checkpoints, mas pode acontecer a qualquer momento do tratamento. Necessita de alto grau de suspeita clínica, já que os sintomas podem se confundir com os do tratamento do câncer em si.

O diagnóstico laboratorial de hipotireoidismo primário é feito mediante um TSH alto e T4 livre baixo. Entretanto, se houve um T4 livre baixo associado a um TSH baixo ou inapropriadamente normal, o diagnóstico de hipotireoidismo secundário (central) deve ser pensado e a hipófise, investigada.

O TSH e o T4 livre (necessariamente os dois) devem ser avaliados a cada 8 semanas do início do tratamento com essas drogas e a qualquer momento se houver sintomas sugestivos de disfunção tireoidiana.

O tratamento é o padrão para tireoidite e o hipotireoidismo, com sintomáticos na fase de tireotoxicose, se houver, seguidos por reposição com levotiroxina.

Hipófise

A inflamação da hipófise, ou hipofisite, é uma condição muito rara fora do contexto dos inibidores de checkpoints. Entretanto, hipofisite ou hipopituitarismo ocorrem em até 10% dos pacientes que receberam anti-CTLA-4 isolado ou combinado com o bloqueio do PD-1.  Raramente acontece com anti-PD-1/PD-L1 em monoterapia (0,5 – 1,0%). Sexo masculino e idade mais avançada parecem ser fatores de risco para essa complicação.

Em modelos animais tratados com anti-CTLA-4 há infiltração de linfócitos e produção de autoanticorpos específicos contra as células que produzem ACTH, TSH e gonadotrofinas).

A maioria dos pacientes com hipofisite apresentam sintomas. Para o tratamento com ipilimumabe, os sintomas aparecem mais entre 9-12 semanas e em 6 meses para os anti-PD-1/PD-L1.

Fadiga e náusea são comuns e podem acontecer por conta de insuficiência adrenal secundária. Dor de cabeça, náuseas, vômitos, visão dupla e defeitos do campo visual são relacionados à neurocompressão de estruturas circunvizinhas à hipófise.

Além da insuficiência adrenal, hipotireoidismo e hipogonadismo centrais ou secundários, também são bastante comuns.

O diagnóstico da hipofisite é feito com a dosagem dos basais hormonais dos diferentes setores (ACTH/cortisol, TSH/T4 livre, FSH/LH e estradiol ou testosterona etc.). Qualquer dose de corticoide recente pode confundir o diagnóstico de insuficiência adrenal e o endocrinologista deve ser consultado já que podem ser necessários testes hormonais dinâmicos, como o teste do ACTH para confirmação diagnóstica da insuficiência adrenal.  

Os pacientes que apresentarem dor de cabeça devem ser investigados com ressonância magnética com atenção especial para área da hipófise. A imagem encontrada na sela túrcica pode ser de uma hipófise aumentada, que pode ser descrita como um “adenoma de hipófise” ou sela vazia. Contudo, uma imagem normal da hipófise não afasta o diagnóstico.

O rastreamento da insuficiência adrenal com cortisol sérico basal é controverso no tratamento dos inibidores de checkpoint.

O tratamento da insuficiência adrenal é padrão, já descrito em outro post, com prednisona ou hidrocortisona.

Se houver o diagnostico de hipotireoidismo concomitante, há dois pontos de atenção:

  1. nunca deve ser feita a reposição da levotiroxina antes de descartar e iniciar o tratamento da insuficiência adrenal com corticoide (isso vale para o hipotireoidismo primário e central) ;
  2. devemos nos basear no T4 livre e não no TSH para definir a dose de reposição de levotiroxina no hipotireoidismo central.

A reposição com esteroides sexuais nos homens e mulheres pode ser realizada, desde que não haja contraindicação ao seu uso.

Pacientes com sintomas de neurocompressão graves (dor de cabeça intensa, visão dupla, alteração do campo visual) podem receber prednisona 1-2mg/kg com rápido desmame (em 1-2 semanas) para não atrapalhar o tratamento oncológico. É possível que o corticoide continue como dose de reposição de insuficiência adrenal, mas não como dose anti-inflamatória.

Insuficiência adrenal primária

A insuficiência adrenal primária é uma complicação rara do tratamento com inibidores de checkpoint.  Os sintomas comuns aos da insuficiência adrenal secundária são cansaço, fadiga e náusea e os sintomas exclusivos da insuficiência primária são escurecimento da pele, hipotensão com ou sem desidratação. No laboratório, temos cortisol baixo com ACTH alto e aumento do potássio como marcadores da insuficiência adrenal primária.

A crise adrenal é mais comum na insuficiência adrenal primária, mas pode acontecer também na secundária. Como a crise adrenal é uma complicação potencialmente fatal, o tratamento com hidrocortisona e reposição volêmica devem ser iniciados mesmo sem a confirmação de qual seria o tipo de insuficiência adrenal. Não esquecer da carta ou cartão de orientação nos casos de emergência na alta do paciente!

De uso contínu, na insuficiência adrenal primária, é necessário um glicocorticoide (prednisona ou hidrocortisona) associado à um mineralocorticoide (fludrocortiosona).

Diabetes mellitus (DM)

É um diabetes mellitus causado pelos inibidores do checkpoint cursam com deficiência grave de insulina. Parece um tipo 1, mas tem algumas particularidades.

É provável que seja um diabetes autoimune, mas os anticorpos contra o pâncreas só estão presentes em 40-50% dos pacientes versus 90% dos pacientes com diabetes tipo 1.

Há uma destruição mais rápida e grave das células beta das ilhotas pancreáticas. Diferentemente da hipofisite, o diabetes mellitus é mais comum em usuários dos inibidores de anti-PD-1/PD-L1 isolado ou em combinação e raro nos que usam CTLA-4 em monoterapia.

Frequentemente, o DM pode vir associado à pancreatite (pâncreas exócrino), tireoidite e colite.

O diagnóstico não é difícil, pois os sintomas são clássicos do diabetes descompensando e da cetoacidose diabética. A glicemia está alta ao diagnóstico, mas a Hb glicada pode não estar elevada, já que a glicemia pode subir de forma rápida e não dar tempo de glicar a hemoglobina.

Mais comumente, o diabetes aparece entre 7-17 semanas do início da terapia com os inibidores do checkpoint, mas pode surgir vários anos depois.

A monitorização da glicemia a cada ciclo da medicação oncológica pode ser útil. Amilase e lipase elevadas suportam o diagnóstico do diabetes induzido pela droga, mas podem vir normais.

O tratamento é feito como no diabetes tipo 1, com reposição de dois tipos de insulinas de forma permanente.

Considerações finais

As complicações endocrinológicas das novas medicações contra o câncer abrem um novo capítulo na endocrinologia e mais um ponto de trabalho em conjunto entre o oncologista e endocrinologista.

A primeira vez que eu ouvi uma colega falar de hipofisite em um dos pacientes dela usando inibidores de checkpoint eu fiquei assustada e curiosa, até o momento em que eu tive um paciente no consultório com insuficiência adrenal secundária ao uso dessas medicações. Percebi, naquele momento, que esse tipo de paciente pode chegar em qualquer consultório de endocrinologia.

Uma das motivações que me fazem escrever nesse blog é aprender mais sobre assuntos novos e esse, certamente, esse é essencial. Espero que essas informações tenham sido úteis para pacientes em tratamento oncológico, aos que trabalham ou convivem com pessoas em tratamento de câncer e colegas de profissão.

Referências

Wright JJ, Powers AC, Johnson DB. Endocrine toxicities of immune checkpoint inhibitors. Nat Rev Endocrinol. 2021 Jul;17(7):389-399. doi: 10.1038/s41574-021-00484-3. Epub 2021 Apr 19. PMID: 33875857; PMCID: PMC8769055.

Percik R, Shoenfeld Y. Check point inhibitors and autoimmunity: Why endocrinopathies and who is prone to? Best Pract Res Clin Endocrinol Metab. 2020 Jan;34(1):101411. doi: 10.1016/j.beem.2020.101411. Epub 2020 Mar 5. PMID: 32278687.

Obrigada por ter chegado até aqui!

Se você gostou da leitura, não deixe curtir e de compartilhar o conteúdo.

Para receber em primeira mão as publicações, você pode se inscrever no blog ou me acompanhar pelas redes sociais. Os links estão no rodapé dessa página.

Espero ver você mais vezes!

Um forte abraço,

Suzana

O botão de doação abaixo é uma forma voluntária de contribuir para manutenção e aprimoramento do trabalho desse blog.

Testosterona baixa em mulher: quando investigar e quando repor

Esse é um assunto muito importante, já bastante falado pelos endocrinologistas, mas não deixaria de comentar sobre ele aqui no blog. Quando dosar e repor testosterona na mulher?

Nos nossos consultórios, é super frequente que chegue uma mulher dizendo que tem problema de testosterona baixa. Se ela não está na menopausa, a testosterona baixa não é um problema médico, aos olhos do endocrinologista. Se ela já entrou na menopausa e está sofrendo com redução da libido, podemos ponderar o uso da testosterona se, e somente se, não houver contraindicação ao seu uso.

Os níveis de testosterona nas mulheres vão reduzindo ao longo da vida reprodutiva, mas os seus valores permanecem relativamente estáveis até os 65 anos de idade. Se essa sobrevida da testosterona é uma vantagem, ainda não está bem definido na literatura científica.

Quando dosar testosterona na mulher?

Os endocrinologistas se preocupam apenas se a testosterona está alta (e não baixa), como já comentado. Em mulheres com queixa de excesso de pelo, acne, queda de cabelo, que são sinais de excesso de testosterona, muito frequentes na Síndrome dos Ovários Policísticos, na Hiperplasia Adrenal Congênita e outros problemas que têm aumento dos “hormônios masculinos”, dosamos a testosterona no sangue.  

Mulheres sem queixas e sem sinais de excesso de hormônio masculino, a testosterona não deve ser dosada. Entretanto, chegam a nós resultados de dosagens de testosterona em mulheres que não têm queixas compatíveis com excesso desse hormônio, solicitados por outros colegas médicos. Se a testosterona está “baixa” temos ainda que ponderar que a medida laboratorial da testosterona tem suas dificuldades.

Como aqui nesse blog chegam muitos colegas da área de saúde, vale a pena comentar sobre essa limitação técnica a da dosagem da testosterona em níveis mais baixos, como acontece nas mulheres.

Métodos laboratoriais para determinação da testosterona

Nos métodos baseados em imunoensaio, quando temos a dosagem com a utilização de anticorpos, pode haver uma falta de especificidade e de precisão em valores mais baixos de testosterona, ou seja, um outro esteroide pode ser medido no lugar da testosterona, já que são moléculas muito parecidas.

Os imunoensaios para a testosterona foram padronizados principalmente para homens e eles não têm uma boa sensibilidade quando a dosagem de testosterona é baixa. Sabendo disso, alguns laboratórios colocam como referência da testosterona para mulheres “até x”, como na Figura 1. Isso quer dizer que abaixo disso é normal, mas não determinam um limite inferior para o valor de referência.

Figura 1. Exemplo de resultado e valor de referência da dosagem de testosterona na mulher.

Esse obstáculo da falta de especificidade seria superado com a separação das diferentes moléculas de forma mais precisa por sua massa no método laboratorial chamado de espectrometria acoplada à cromatografia, considerado como “padrão-ouro”. Infelizmente, não temos essa última metodologia amplamente disponível nos laboratórios comerciais. O que se analisa são os esteroides por imunoensaio e, portanto, sujeito a erros de leitura.

A figura abaixo mostra as diferentes técnicas para determinação dos hormônios esteroides: os imunoensaios, espectrometria de massa e a cromatografia líquida em tandem.

Figura 2. Comparação entre os métodos imunométricos e por espectometria-cromatografia dos hormônios esteroides.

Avaliação clínica, transtorno do desejo sexual hipoativo e reposição de testosterona na mulher

A testosterona é tida por muitos como um hormônio de vitalidade e nas mulheres com queixa de falta de energia, desejo sexual. Sendo assim, a “testosterona baixa” é sempre uma culpada por essas queixas.

Se temos uma mulher em fase reprodutiva (menacme) com queixa de falta de libido sexual, muito antes de pensar na testosterona, é necessário avaliar se não há outros interferentes que possam prejudicar o desejo sexual como: distúrbios hormonais, como aumento da prolactina, problemas psicológicos e de relacionamento com parceiro(a), efeito colateral de medicações como alguns antidepressivos, estilo de vida inadequado etc.

Vale a pena lembrar que uma das causas comuns de “testosterona baixa” fora da menopausa é a pílula combinada (anticoncepcional oral). A pílula combinada sabidamente reduz a testosterona livre por aumento da SHBG, como já vimos em outro post nesse blog.

Nas mulheres na pós-menopausa com queixa de redução da libido, temos que ver se elas têm o que se chama transtorno desejo sexual hipoativo (TDSH). Da mesma forma, antes de pensar na reposição da testosterona, podemos avaliar se não há doenças crônicas e uso de medicações que possam reduzir a libido, como fazemos com as mulheres em fase reprodutiva.

Na menopausa, caso haja outros sintomas dessa fase, como fogachos, ressecamento vaginal e não haja contraindicação à terapia hormonal estrogênica, a reposição de estradiol associada ou não à progesterona já pode resolver várias questões, inclusive da libido sexual. Esse tratamento, mesmo sem a testosterona, pode melhorar a qualidade de vida, a qualidade do sono, a lubrificação vaginal e, como consequência, o desejo e ato sexual ficam mais satisfatórios.

Se mesmo com terapia hormonal estrogênica adequada, caso a mulher na pós-menopausa atenda aos critérios de TDSH, podemos pensar na terapia com testosterona associada ao tratamento hormonal padrão.

O TDSH é uma redução ou ausência de desejo ou motivação para a atividade sexual. E quais são esses critérios para o transtorno do desejo sexual hipoativo?

  1. Redução ou ausência de desejo sexual (pensamentos ou fantasias);
  2. Redução ou ausência de responder a sinais e estimulação eróticos;
  3. Incapacidade de manter o desejo ou interesse na atividade sexual quando já iniciada.

Esses sintomas devem ser persistentes, durarem mais de seis meses, e devem causar sofrimento significativo para mulher. Esse último ponto em negrito é realmente de destaque, pois seria a condição para se pensar em repor testosterona. Se a mulher tem redução do desejo sexual e não está mal por conta disso, está “de boa”, a testosterona não é indicada.

Passadas todas as etapas de avaliação de fatores interferentes, terapia hormonal estrogênica adequada, se o diagnóstico de TDSH for feito, a terapia com testosterona pode ser indicada.

Como fazer a prescrição e acompanhamento do uso da testosterona em mulheres

O problema agora é que aqui no Brasil não temos formulações de testosterona em baixas doses, considerando que a dose recomendada para início de tratamento de mulheres na pós-menopausa com transtorno do desejo sexual hipoativo é de apenas 300μg de testosterona ao dia por via transdérmica em adesivo.

Já que não temos produtos com essa dose, temos que solicitar que a paciente obtenha o hormônio na farmácia de manipulação. No nosso meio, o mais comum é que a testosterona seja manipulada em gel, que pode ter uma absorção e biodisponibilidade variável. Na Tabela 1 temos uma sugestão de formulação da testosterona.

DoseVeículoAbsorçãoExemplo de prescrição
Testosterona base 1-5 mgVeículo de alta performance (Pentravan® )50% a 63%Testosterona base 2,0 mg Pentravan® q.s.p……1,0 ml
Veículo alcóolico9% a 14%Testosterona base 5,0 mg veículo alcóolico q.s.p…1,0 ml
Tabela 1. Exemplo de prescrição para testosterona manipulada (Ref. 3).

Os implantes de testosterona não são recomendados para essa finalidade.

É aconselhável que se tenha uma dosagem de testosterona antes do início da terapia e depois de 3 a 4 semanas após seu início para ajuste de dose. Uma vez a dose mínima necessária para melhora dos sintomas seja atingida, deve-se reavaliar os níveis de testosterona após 3 meses.

Não há estudos que comprovem a segurança da testosterona em longo prazo. Por isso, o tratamento deve ser sempre realizado com um acompanhamento cuidadoso.

Considerações finais

Os endocrinologistas não se cansam de falar que não se dosa testosterona na mulher, apenas se houver suspeita que esse hormônio esteja alto, que não se deve usar testosterona para fins estéticos e de desempenho em qualquer área da vida, que não se pode usar terapia hormonal se há alguma contraindicação, que não há libido que dê conta se a pessoa não tem um estilo de vida adequado, que a terapia hormonal indiscriminada traz muitos riscos à saúde.

Mesmo com todo o empenho da especialidade em disseminar os pontos acima, encontramos muitas mulheres com queixa de libido baixa ou mesmo só de “testosterona baixa”, fruto da propaganda ilusória da terapia hormonal como elixir para todos os males, como ela é vendida nas redes sociais e por médicos inescrupulosos.

Esse texto foi para reforçar o que nós já falamos extensivamente por nós e entre nós em congressos científicos e nas redes sociais, mas que ainda não temos certeza se essas informações estão disseminadas.

 A informação que deve ficar é que a única indicação de terapia com testosterona é para mulheres na pós-menopausa com transtorno do desejo sexual hipoativo que esteja lhe causando sofrimento, desde que ela não tenha contraindicação.

Agradecimento especial à Monica de Oliveira, minha amiga e colega endocrinologista, pelas sugestões e revisão desse texto.

Referências

  1. Davis SR, Baber R, Panay N, Bitzer J, Perez SC, Islam RM, Kaunitz AM, Kingsberg SA, Lambrinoudaki I, Liu J, Parish SJ, Pinkerton J, Rymer J, Simon JA, Vignozzi L, Wierman ME. Global Consensus Position Statement on the Use of Testosterone Therapy for Women. J Clin Endocrinol Metab. 2019 Oct 1;104(10):4660-4666. doi: 10.1210/jc.2019-01603. PMID: 31498871; PMCID: PMC6821450.
  2. Rossi, C.; Cicalini, I.; Verrocchio, S.; Di Dalmazi, G.; Federici, L.; Bucci, I. The Potential of Steroid Profiling by Mass Spectrometry in the Management of Adrenocortical Carcinoma. Biomedicines 20208, 314. https://doi.org/10.3390/biomedicines8090314
  3. Lara LADS, Pereira JML, de Paula SRC, de Oliveira FFL, Cunha AM, Lerner T, Villar Y, Antoniassi GPR, Benetti-Pinto CL. Challenges of prescribing testosterone for sexual dysfunction in women: Number 7 – 2024. Rev Bras Ginecol Obstet. 2024 Jul 26;46:e-FPS07. doi: 10.61622/rbgo/2024FPS07. PMID: 39176198; PMCID: PMC11341187.

Posts relacionados

Pilula anticoncepcional e libido sexual feminina
Live sobre menopausa

Obrigada por ter chegado até aqui!

Se você gostou da leitura, não deixe curtir e de compartilhar o conteúdo.

Para receber em primeira mão as publicações, você pode se inscrever no blog ou me acompanhar pelas redes sociais. Os links estão no rodapé dessa página.

Espero ver você mais vezes!

Um forte abraço,

Suzana

O botão de doação abaixo é uma forma voluntária de contribuir para manutenção e aprimoramento do trabalho desse blog.

Hipotireoidismo, dores musculares e colesterol alto

Esse post é um alerta para quem está com o colesterol ruim alto.

Quando o colesterol ruim sobe, temos que descartar que seja por conta da diminuição da função da tireoide, o hipotireoidismo: o colesterol está alto porque há pouco hormônio de tireoide.

No hipotireoidismo descompensado, temos lesão muscular. Na clínica, o paciente se queixa de dores musculares; no laboratório, temos aumento do TSH e de uma enzima muscular chamada creatinoquinase, creatinofosfoquinase ou CPK.

Por que é importante saber disso?

Porque o tratamento do aumento do colesterol é geralmente feito com uma classe de medicações chamadas de estatinas. Elas podem aumentar potencializar a lesão muscular causada pelo hipotireoidismo e elevando vertiginosamente a CPK. Além da exarcerbação da dor muscular, podemos ter lesão do rim pelo aumento da CPK.

Qual são os recados importantes:

  • Na investigação do aumento do colesterol, é altamente recomendável avaliar a função da tireoide;
  • No hipotireoidismo diagnosticado, sempre dar primeiro o hormônio da tireoide e depois ver se o colesterol normaliza ou ainda permanece alto;
  • Se o colesterol permanece alto com o hipotireoidismo compensado e na ausência de outras causas, pode-se pensar em dar as estatinas para controle do colesterol.
  • Não dar estatinas antes de controlar o hipertireoidismo, pois poderá piorar a lesão muscular e causar danos aos rins.

Abaixo, os posts relacionados ao tema, com exemplo de vida real de uma paciente que recebeu estatina e estava com hipotireoidismo descompensado.

Obrigada por ter chegado até aqui!

Se você gostou da leitura, não deixe curtir e de compartilhar o conteúdo.

Para receber em primeira mão as publicações, você pode se inscrever no blog ou me acompanhar pelas redes sociais. Os links estão no rodapé dessa página.

Espero ver você mais vezes!

Um forte abraço,

Suzana

O botão de doação abaixo é uma forma voluntária de contribuir para manutenção e aprimoramento do trabalho desse blog.