Paradoxo da calcificação: osso versus coração

Paradoxo da calcificação: suplementação de cálcio e vitamina K2

A diminuição da quantidade cálcio no osso em paralelo com o aumento da deposição de cálcio nos vasos é um fenômeno conhecido como “paradoxo da calcificação”, ou seja, o cálcio vai para o lugar errado. O paradoxo da calcificação é comum nas mulheres pós menopausa e pessoas com doença renal crônica. Nesse texto, discutiremos brevemente suplementação de cálcio e da vitamina K2 sobre a saúde óssea e cardiovascular.

Suplementação de cálcio

A necessidade média é de 1000 a 1200mg/dia de cálcio elementar para adultos. Confira o próximo post para saber a necessidade diária em outras faixas etárias e fontes alimentares.  Uma dieta livre de derivados de leite contém cerca de 250mg de cálcio. Para verificar a sua ingesta de cálcio na dieta, você pode utilizar a calculadoras disponíveis na internet . Para as pessoas que não conseguem atingir a quantidade recomendada desse mineral, pode-se complementar (usaremos a palavra suplementar) com compostos contendo cálcio. Os suplementos de cálcio mais comuns estão na forma de carbonato, citrato ou fosfato de cálcio.

Graves deficiências de cálcio podem levar a quadros de raquitismo e osteomalácia e são mais raras. Temos a osteopenia e a osteoporose como doenças osteometabólicas mais frequentes, sendo para elas a principal indicação para a suplementação de cálcio para melhora da função musculoesquelética e objetivo final de reduzir fraturas ósseas. Para essas condições, tem sido questionado se a suplementação de cálcio seria útil para redução de fraturas 1. Além dos eventos adversos gastrointestinais, risco de cálculo renal quando associado à vitamina D, ainda há um risco recentemente aventado do aumento do risco cardiovascular decorrente da suplementação de cálcio.

Em relação ao aumento do risco cardiovascular, estudos observacionais (os que mostram associação, mas não provam relação causa-efeito) com resultados conflitantes foram publicados na última década. Em 2016, à luz das evidências da época, algumas sociedades definiram como limites seguros do ponto de vista cardiovascular uma ingesta de cálcio que não excedesse 2.500mg/dia, com ou sem suplementação

Um artigo publicado em 2016 no Journal of  the American  Heart  Association mostrou a associação do uso de suplementos de cálcio com aumento da calcificação em coronárias em 22%, avaliada por tomografia computadorizada em cerca de 2700 pacientes após um período de 10 anos. O aumento do risco foi observado com os usuários de suplementos (em comprimidos) de cálcio, mas não com o cálcio proveniente dos alimentos, pelo contrário, o maior consumo de cálcio alimentar mostrou proteção cardiovascular2.

Suplementação de vitamina K

Além suplementação de vitamina D e cálcio, muito se tem falado da vitamina K no tratamento da osteopenia/osteoporose na forma de vitamina K2.

A vitamina K está contida em fontes alimentares vegetais, animais e ainda produzido por bactérias intestinais com detalhado no post seguinte.

O fígado é o principal órgão de estoque de vitamina K, onde são sintetizados os fatores de coagulação dependentes dessa vitamina. A deficiência da vitamina K pode levar a sangramentos, por isso o nome da vitamina é derivado da palavra “koagulation.” Esse é um papel já bem conhecido da vitamina K.

Além da sua ação hépatica, a vitamina K também é responsável por modificações em diversas proteínas pela através do processo de carboxilação. A osteocalcina no osso e outras proteínas na parede dos vasos sofrem influência do processo que é dependente de vitamina K. As proteínas carboxiladas ou pouco carboxiladas podem influir no processo de mineralização óssea ou calcificação extraesquelética, como veremos a seguir.

Ação da vitamina K no osso

O colágeno é a principal proteína do osso, correspondendo a 90% de toda matriz proteica. Dos 10% restantes, a osteocalcina é a proteína predominante. Apesar de ser a principal proteína não-colágena, a osteocalcina não desempenha um papel de destaque na mineralização. Essa proteína está envolvida no metabolismo da glicose e na síntese de testosterona, eixos que podemos detalhar em futuras publicações. Na prática clínica, é um marcador de formação óssea, já que é produzida pelas células envolvidas na formação do osso (osteoblastos).

Há evidências da associação da deficiência de vitamina K2 com uma quantidade menor de carboxilação da osteocalcina e redução da densidade mineral óssea.

Uma revisão sistemática  descreve vários estudos que avaliaram o efeito da vitamina K no osso e a conclusão foi que a suplementação de vitamina K2 não deve ser recomendada de rotina para mulheres pós menopausa com osteoporose por falta de boas evidências científicas3.

Ação da vitamina K nos vasos

Proteínas ricas em ácido γ-carboxiglutâmico (Gla) são apontadas ainda como importantes fatores para evitar a calcificação nos tecidos moles. Aponta-se que a deficiência de vitamina K2 levaria à redução de proteínas Gla dos vasos e maior predisposição à deposição do cálcio nesses tecidos.

Dessa forma, a deficiência de vitamina K estaria relacionada problemas na estrutura de osteocalcina – que teria um papel (menor) na formação do osso – e também na síntese de proteínas que evitariam a calcificação extraesquelética, por exemplo, nos vasos. Esse seria o racional para a adição da vitamina K2 aos suplementos de cálcio, ou seja, proteger o osso sem aumentar o risco cardiovascular e minimizar o paradoxo da calcificação.

Ações da vitamina K. OCc – osteocalcina carboxilada; OCpc – osteocalcina pouco carboxilada; GPCc -Gla proteínas da matrix carboxilada; GPMpc – Gla proteínas da matriz pouco carboxilada

Suplementar ou não suplementar vitamina K2 ? E como?

Sem dúvida, a ingesta adequada de vitaminas e minerais para manter a saúde óssea é fundamental. Parece que há um consenso que a melhor forma de suplementar o cálcio é pela dieta, já que não haveria aumento do risco vascular. Seria, portanto, desnecessário e possivelmente danoso suplementar cálcio em pessoas com ingesta de cálcio alimentar adequada.

A vitamina K2 tem sido suplementada em conjunto com o cálcio para (1) melhorar a calcificação no osso e (2) impedir a calcificação em outros tecidos como vasos. Se esse segundo motivo for o principal para a indicação da prescrição de vitamina K, mais simples seria tentar suplementar o cálcio de fontes alimetares. Administrar um complexo vitamínico e mineral com objetivo minimizar o potencial efeito deletério de um deles torna o assunto mais complexo…com permissão do trocadilho. As evidências clínicas em estudos com pessoas são controversas (3) ou não mostraram benefício (4).

Os estudos com a vitamina K não avaliaram fraturas e eventos cardiovasculares como infarto e derrame.

Sabemos que o leite e derivados são as fontes ricas de cálcio, mas não são alimentos baratos. Pacientes de mais baixa renda quando questionados sobre o consumo de queijo, por exemplo, referem que conseguem fazê-lo apenas em certa época do mês, quando recebem seus salários ou benefícios.

Em algumas cidades os suplementos de cálcio  precisam ser comprados e também não custam pouco. Por exemplo, no município de São Paulo, há liberação na rede pública apenas para casos de grávidas como dieta pobre em cálcio, grávidas com maior risco de pré-eclampsia, no tratamento de fósforo elevado na insuficiência renal crônica ou distúrbios do metabolismo ósseo relacionados à doença renal crônica e nos casos de hipoparatireoidismo.

Pode ser que o valor investido em alimentos seja semelhante ao que seria investido em suplementos, com melhor custo-benefício para saúde.Alguém já fez essa conta? É mais vantajoso ir à feira ou à farmácia?

Referências

1                      CHIODINI, I.; BOLLAND, M. J. Calcium supplementation in osteoporosis: useful or harmful? Eur J Endocrinol, v. 178, n. 4, p. D13-D25, Apr 2018. ISSN 1479-683X. Disponível em: < https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/29440373 >.

2                      ANDERSON, J. J.  et al. Calcium Intake From Diet and Supplements and the Risk of Coronary Artery Calcification and its Progression Among Older Adults: 10-Year Follow-up of the Multi-Ethnic Study of Atherosclerosis (MESA). J Am Heart Assoc, v. 5, n. 10, 10 2016. ISSN 2047-9980. Disponível em: < https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/27729333 >.

3. Vlasschaert C, Goss CJ, Pilkey NG, McKeown S, Holden RM. Vitamin K Supplementation for the Prevention of Cardiovascular Disease: Where Is the Evidence? A Systematic Review of Controlled Trials. Nutrients. 2020 Sep 23;12(10):2909. doi: 10.3390/nu12102909. PMID: 32977548; PMCID: PMC7598164.

4. Diederichsen ACP, Lindholt JS, Möller S, Øvrehus KA, Auscher S, Lambrechtsen J, Hosbond SE, Alan DH, Urbonaviciene G, Becker SW, Fredgart MH, Hasific S, Folkestad L, Gerke O, Rasmussen LM, Møller JE, Mickley H, Dahl JS. Vitamin K2 and D in Patients With Aortic Valve Calcification: A Randomized Double-Blinded Clinical Trial. Circulation. 2022 May 3;145(18):1387-1397. doi: 10.1161/CIRCULATIONAHA.121.057008. Epub 2022 Apr 25. PMID: 35465686; PMCID: PMC9047644.

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