Olhos, rins e nervos: estes são os órgãos afetados pelas complicações microvasculares do diabetes. Os nervos são mais esquecidos em relação aos outros dois. Talvez a complicação mais comum, mas também a mais subdiagnosticada seja a neuropatia diabética.
Dependendo do critério utilizado, mais de 50% dos pacientes com diabetes têm esse tipo de complicação.
Muitas vezes, o paciente é que nos lembra com suas queixas de dor, queimação nos pés que se acentuam à noite, na hora de dormir.
O diabetes pode afetar um nervo isolado ou vários nervos ao mesmo tempo. Pode afetar ainda o sistema nervoso autonômico ou somático. Há várias classificações na neuropatia, mas esse texto vai se destinar a forma mais comum que é a polineuropatia periférica simétrica diabética, a qual chamaremos apenas de neuropatia diabética.
Fisiopatologia da neuropatia diabética
Imaginem a central de processamento de dados que recebe, analisa e devolve as informações. Essa central de processamento faz isso através de fios encapados. A central de processamento é o sistema nervoso central e os fios são os nervos. O fio pode ser longo, como os que inervam a pontinha do pé.
O dano aos nervos pelo diabetes vai causando uma morte do neurônio de trás para frente (ou de baixo para cima). Dessa forma, as alterações de sensibilidade começam na planta dos pés e das mãos e vão subindo, formando depois uma bota de cano baixo e, em seguida, de cano alto.
Outra peculiaridade é que os nervos sensitivos são afetados antes dos nervos motores, isso porque as fibras finas são afetadas primeiro do que as fibras grossas. As fibras grossas são as que tem a bainha de mielina mais grossa, seria um fio de grosso calibre. Tem ainda as fibras pouco mielinizadas, que seriam fios ainda “encapados”, mas de menor calibre e as fibras finas ou não mielinizadas. Na Figura 1 temos a representação dessas fibras com o tipo de função que elas exercem.

Nos nervos, os nutrientes entram sem barreiras. A hiperglicemia e o aumento das gorduras no sangue saturam as vias intracelulares que metabolizam esses substratos levando ao estresse oxidativo e ao acúmulo de substâncias tóxicas para os nervos. É como se esses fios recebessem uma carga elétrica que eles não conseguem suportar e entram em “curto-circuito”.
O dano aos pequenos vasos (microvascular) que irrigam os nervos pelo diabetes não é considerado como fator principal, mas é um coadjuvante para o desenvolvimento da neuropatia diabética.
A resistência à insulina é um mecanismo mais evidente no diabetes tipo 2. É evidente que o tratamento tem um efeito substancial para o diabetes tipo 1, mas não é da mesma forma para o diabetes tipo 2. Para esse último, a correção dos componentes da síndrome metabólica tem maior impacto sobre o dano neural pela melhora da resistência à insulina.
De 30 a 50% dos pacientes com neuropatia diabética desenvolvem sintomas dolorosos. O mais curioso é que esses sintomas “positivos” são acompanhados por perda de sensibilidade. Os pacientes relatam que ao mesmo tempo que os pés doem, queimam, eles são insensíveis ao toque.
Fatores de risco para a neuropatia diabética
Para quem tem diabetes tipo 1, a hiperglicemia parece ser o principal vilão. Já para quem tem diabetes tipo 2, não só a hiperglicemia, mas os vários componentes da síndrome metabólica, tais como resistência insulínica, obesidade, hipertensão arterial, dislipidemia aterogênica, além do tabagismo, em conjunto, são igualmente importantes. Pessoas altas também tem os nervos periféricos mais suscetíveis.
Classificação da neuropatia diabética
Há vários tipos de classificação, o quadro abaixo é conforme a apresentação clínica
Tabela 1. Classificação da neuropatia diabética de acordo com a apresentação clínica
Neuropatias difusas |
Polineuropatia distal simétrica Neuropatia autonômica (cardiovascular, gastrointestinal, urogenital, sudomotora) Neuropatia sensitiva aguda (induzida pelo tratamento, caquexia diabética) |
Neuropatias focais |
Neuropatia cranial isolada (ex. nervos cranianos III, VII, VI, IV) Neuropatias periféricas isoladas (ex. nervos ulnar, mediano, femoral, peroneal) Neuropatias por compressão (ex. síndrome do túnel do carpo, neuropatia ulnar) Outras mononeuropatia (mononeuropatia frênica) |
Neuropatias multifocais |
Radiculopatias diabéticas (ex. lombossacra, torácica, cervical) |
Rastreamento e diagnóstico
Todos os pacientes com diabetes tipo 2 ao diagnóstico e os com diabetes tipo 1 depois de 5 anos de diagnóstico devem ser avaliados para a presença da neuropatia diabética e, depois disso, anualmente se a pesquisa foi negativa.
Há várias ferramentas para o diagnóstico da neuropatia diabética. A Sociedade Brasileira de diabetes recomenda o Escore de comprometimento Neuropático (ECN/NDS) e fala que a simples associação de sintomas neuropáticos com o diabetes não é suficiente para o diagnóstico de neuropatia diabética. Esse escore se baseia na avaliação da sensibilidade vibratória, térmica, dolorosa e dos reflexos nos membros.
O monofilamento 10g é um teste onde se toca a planta dos pés com um tipo de fio de nylon que fornece uma pressão de 10g na ponta. A insensibilidade de alguns pontos examinados é um indício de um pé que tem alto risco para ulcerações. Como teste de rastreio, deve ser utilizado com cuidado, pois a sensibilidade não é de 100%, ou seja, não está alterado em todos os pacientes com neuropatia diabética.
Mesmo em casa, o paciente pode fazer o teste de rastreio com o Neuropad ®, que é um adesivo que muda de cor quando a sudorese está preservada de azul para rosa quando colocado na sola dos pés. Se o teste for normal, praticamente é excluída a presença da neuropatia diabética.
Na prática clínica, muitas vezes a eletroneuromiografia pode ser solicitada. Esse exame deve ser realizado por um profissional treinado e habilitado. Como já comentado, a polineuropatia diabética atinge primeiramente as pequenas fibras que não são testadas por esse exame.
Tem mais uma lista grande de testes menos usuais ou mais invasivos, como a microscopia confocal da córnea e a biópsia de pele para avaliar as fibras finas. Os demais exames são detalhados nos textos-base das referências.
O diagnóstico é de exclusão, o que significa que há de se descartar outras causas.
Metabólico
- Hipotireoidismo
- Doença renal
Drogas
- Álcool
- Amiodarona
- Quimioterapia
Nutricional
- Deficiência de vitamina B12
- Excesso de vitamina B6 (piridoxina)
- Deficiência de tiamina e tocoferol (vitamina E)
Metais pesados
- Mercúrio
- Arsênico
Agentes industriais
- Acrilamida
- Organofosforados
Infeccioso
- HIV
- Hepatite B
- Doença de Lyme
Doenças sistêmicas
- Vasculite
- Paraproteinemia
- Amiloidose
Doenças inflamatórias
- Polirradiculoneuropatia inflamatória desmielinizante crônica
Hereditário/genético
A história clínica pode direcionar para a investigação das causas de neuropatia acima.
Tratamento da neuropatia diabética
Há poucos tratamentos que podem modificar o curso da doença além do controle glicêmico. A mudança de estilo de vida, notadamente a atividade física, melhorou índices relacionados à quantidade de fibras finas. Essa melhora foi vista mesmo com redução de peso modesta.
Vários estudos foram desenhados direcionando para a patogênese da neuropatia diabética. Esses estudos mostraram alguma evidência de eficácia, mas de benefício ainda duvidoso nas fases finais do estudo (fase III), Entre as medicações estudadas está o ácido alfa lipoico, ou ácido tioctico, que demonstrou em estudos clínicos melhorar os sintomas na neuropatia diabética. Esse é o composto com mais estudos.
Ainda temos a benfotiamina, que aumentou a concentração de tiamina intracelular e reduziu os produtos avançados de glicação (AGEs) em estudos experimentais. Os óleos ricos em ômega 3 e os inibidores da alfa-redutase também estão nessa lista.
Quando o assunto é dor, já temos mais possibilidades terapêuticas para falar, embora sejam tratamentos direcionados apenas aos sintomas e que não modificam a doença. As classes de medicações mais utilizadas são os anticonvulsivantes e os antidepressivos.
Anticonvulsivantes – são efetivos no tratamento da dor da neuropatia diabética. Temos a pregabalina e a gabapentina como sugestões de tratamento. A gabapentina é mais barata.
Antidepressivos duais – são os inibidores seletivos da recaptação de serotonina e noradrenalina. Exemplos dessas medicações são a duloxetina e a venlafaxina.
Antidepressivos tricíclicos – são medicações mais antigas. Amitriptilina e nortriptilina são exemplos dessa classe de medicação.
Opioides – evitar pelo risco de dependência e por conta das outras alterações hormonais já comentadas em outro post nesse blog.

Considerações finais
A neuropatia diabética é uma complicação subdiagnosticada e fator de risco para amputações de membros inferiores além de piorar bastante a qualidade de vida do paciente. Para prevenir essa complicação é imperativo o controle do diabetes e dos componentes da síndrome metabólica.
Não há ainda opções terapêuticas que modifiquem a doença além do exercício físico. Esse último, não está na farmácia. Da farmácia mesmo, acabamos utilizando as medicações para tratar a dor.
Esse assunto é bastante extenso e aqui eu fiz um recorte de pontos que considero importantes. Nas referências e nos posts e vídeos relacionados, você pode complementar as informações aqui contidas.
Referências
- Feldman EL, Callaghan BC, Pop-Busui R, Zochodne DW, Wright DE, Bennett DL, Bril V, Russell JW, Viswanathan V. Diabetic neuropathy. Nat Rev Dis Primers. 2019 Jun 13;5(1):41. doi: 10.1038/s41572-019-0092-1. PMID: 31197153.
- Rolim L, Thyssen P, Flumignan R, andrade D, Dib S, Bertoluci M. Diagnóstico e tratamento da neuropatia periférica diabética. Diretriz Oficial da Sociedade Brasileira de Diabetes (2022). DOI: 10.29327/557753.2022-14, ISBN: 978-65-5941-622-6.
- Vinik, A., Ullal, J., Parson, H. et al. Diabetic neuropathies: clinical manifestations and current treatment options. Nat Rev Endocrinol 2, 269–281 (2006). https://doi.org/10.1038/ncpendmet0142
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