Pré-diabetes

O pré-diabetes tem sido um diagnóstico cada vez mais frequente, em parte decorrente das mudanças ocorridas ao longo do tempo nos critérios diagnósticos, como foi discutido no post anterior.
O que fazer (ou não fazer) diante desse diagnóstico?

Para responder a essa pergunta, temos que resgatar um pouco de história novamente. 

Intolerância à glicose e risco de complicações

Na década de 90, já eram descritos estudos observacionais correlacionando a tolerância diminuída à glicose (TDG) ao desenvolvimento de diabetes franco e aumento das complicações macrovasculares, estas últimas se referem àquelas que atingem grandes vasos, causando infarto, derrame e obstruções nas artérias dos membros inferiores. Relembrando que o diagnóstico de TDG era dado frente a uma glicemia entre 140 e 200 mg/dL na curva glicêmica de 2h. 

Nos estudos observacionais, um grupo de pessoas é seguido ao longo do tempo, mas nenhuma intervenção é feita para modificar as variáveis de risco (por exemplo: controle da glicemia, pressão, uso de medicações etc.). Depois de um determinado tempo, os dados antropométricos e também bioquímicos são cruzados com os eventos observados nesses pacientes (ex: morte, infarto, derrame, desenvolvimento do diabetes etc.) a fim de verificar se há alguma associação entre eles. 

Estudos de intervenção no pré-diabetes

Diante dos achados encontrados nos estudos observacionais, são propostos estudos de intervenção para verificar se o controle de determinado fator de risco muda o desfecho encontrado previamente no estudo não controlado. Um dos estudos de intervenção mais importantes quando se fala em pré-diabetes é o Diabetes Prevention Program.  Esse grande programa que teve como objetivo inicial a comparação de três grupos quanto à progressão do pré-diabetes ao diabetes tipo 2: placebo, metformina e mudança de estilo de vida.

1.Grupo mudança de estilo de vida, que consistia em atingir os seguintes objetivos:

  • Redução de pelo menos 7% do peso
  • 150 min de atividade física por semana divididas em pelo menos 3 sessões

2. Grupo metformina:

  • dose de 850 mg duas vezes ao dia

3. Grupo placebo

Após uma média de três anos de acompanhamento, o grupo de mudança de estilo de vida reduziu em 58% o risco de progressão para diabetes comparado ao grupo placebo, enquanto o grupo metformina teve redução do risco em 31% (Fig. 1). A evolução para o diabetes no grupo placebo foi da ordem de 10% ao ano.  

Figura 1. Evolução do pré-diabetes para o diabetes nos três grupo de estudo

O estudo DPPOS (Diabetes Prevention Program Outcomes Study) foi o seguimento do estudo DPP, cujo objetivo foi avaliar a progressão de diabetes e complicações micro e macrovasculares em longo prazo. Ao final de 15 anos, o estudo DPPOS  mostrou que a medida mais eficaz para redução da progressão do diabetes foi a mudança de estilo de vida, principalmente a atividade física, independentemente da redução do peso. A metformina se mostrou menos eficaz do que no início do estudo em prevenir o desenvolvimento do diabetes. Ao final de 15 anos do início do programa, a mudança de estilo de vida reduziu o risco de progressão do diabetes em 27% e a metformina em 18% quando comparados ao placebo (Fig. 2).

Figura 2. Acompanhamento em longo prazo dos grupos de estudos originais do estudo DPP (estudo DPPOS)

Quanto ao desenvolvimento das complicações, as intervenções não preveniram o desenvolvimento das complicações microvasculares quando analisado todo o grupo de participantes, entretanto, aqueles que não progrediram para diabetes tiveram menor prevalência de complicações microvasculares em relação àqueles que progrediram. O programa continua como DDPOS-3  para avaliar o impacto da metformina nas doenças cardiovasculares e câncer. 

Baseada no estudo DPP e DPPOS, a Sociedade Brasileira Diabetes recomenda a mudança de estilo de vida e reserva o tratamento medicamentoso (metformina) para:

  • Pacientes muito obesos IMC >35 kg/m2
  • Passado de diabetes gestacional 
  • HbA1c > 6% ou que evolui com aumento mesmo após mudança de estilo de vida 
  • Não indicada para pacientes > 60 anos (resultado semelhante ao placebo)

Medicalização do fator de risco

Uma afirmação comum em todos os texto consultados é que:

O pré-diabetes não é uma doença, mas um fator de risco para o desenvolvimento do diabetes.

Será que devemos medicalizar um fator de risco?

A metformina é a medicação mais utilizada no pré-diabetes. Apesar de ser uma medicação antiga e muito segura, ela não é inofensiva. Os seus efeitos colaterais mais comumente observados são sobre aparelho digestivo e outros mais raros, como a deficiência de vitamina B12. Considerando ainda que a metformina não foi capaz de reduzir a progressão do diabetes de forma sustentada e ainda não é benéfica em todos os casos, inclusive em pessoas acima de 60 anos, precisamos discutir o uso mais racional da metformina diante de resultados de glicemia e, principalmente, HbA1c alterados. Essa última tem mostrado problemas de acurácia para o diagnóstico de pré-diabetes.  

Discute-se ainda uma questão semântica se a antecipação do uso de medicamentos no pré-diabetes seria realmente uma prevenção ou antecipação do tratamento do diabetes. 

A mudança de estilo de vida foi a medida que se mostrou mais eficaz ao longo dos anos na prevenção do diabetes, mas ainda não foi capaz de evitá-la, já todos os grupos tiveram essa evolução. Precisamos consideram que intervenções mais eficazes são necessárias nos grupos de maior risco. Uma delas pode ser a perda de peso mais intensa com dieta de baixa caloria, já que foi capaz até de provocar remissão do diabetes já estabelecido
em pacientes obesos, e possivelmente funcionaria no pré-diabetes. Enquanto isso, aguardemos os estudos para saber se as intervenções atuais para o pré-diabetes diminuem ou não as complicações cardiovasculares e se precisamos manter as mesmas preocupações e condutas.

Aliadas às atitudes individuais, medidas amplas em relação a políticas públicas para evitar obesidade e, consequentemente, diabetes tipo 2 são necessárias. As medidas passam pela regulamentação de bebidas adoçadas e outras políticas intersetoriais. O alto consumo de açúcar através de alimentos ultraprocessados e bebidas adoçadas podem de levar a um tipo de vício nesses alimentos e foi relacionado aumento do risco de câncer.

Referências

  1. http://www.niddk.nih.gov/about-niddk/research-areas/diabetes/diabetes-prevention-program-dpp/Pages/default.aspx
  2. GROUP,D. P. P. D. R. The Diabetes Prevention Program (DPP): description of lifestyleintervention. Diabetes Care, v. 25,n. 12, p. 2165-71, Dec 2002. ISSN 0149-5992
  3. http://www.thelancet.com/pdfs/journals/lancet/PIIS0140-6736(09)61457-4.pdf
  4. LEAN,M. E.  et al. Primary care-led weightmanagement for remission of type 2 diabetes (DiRECT): an open-label,cluster-randomised trial. Lancet, v.391, n. 10120, p. 541-551, 02 2018. ISSN 1474-547X

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