Diabetes: resultado de gordura no pâncreas e outros órgãos

Post atualizado em 23/10/19

A relação entre obesidade e diabetes tipo 2 é mencionada em todos os textos científicos e não científicos. O aumento do número de pessoas com diabetes cresce com aumento da obesidade nas última décadas. Entretanto, para causar problemas a gordura deve estar no lugar errado. Um exemplo disso é a gordura no pâncreas.

A gordura ectópica (fora do tecido adiposo) explica em parte porque nem todo obeso é tem diabetes e o contrário também é verdadeiro. Por exemplo, observamos que mulheres com índices de massa corporal (IMC) muito elevados não apresentarem diabetes, enquanto homens com IMC pouco elevados já apresentarem diabetes. Ou ainda em relação à etnia, os asiáticos apresentarem diabetes com IMC muito menores que os europeus.

Efeito “spill over” e gordura ectópica no pâncreas e outros tecidos

Há uma ideia é que cada pessoa tem uma capacidade limitada e particular de armazenamento de gordura no tecido subcutâneo, e quando essa capacidade de armazenamento própria de cada pessoa é excedida, resulta em um tipo de “transbordamento ou “vazamento” de gordura para outros órgãos, do inglês “fat spill over“.

A gordura que não cabe mais no tecido subcutâneo vai para outros tecidos que normalmente não tem função de armazená-la. Nesses tecidos que não estão preparados para receber a gordura, ocorre o fenômeno conhecido por lipotoxicidade, que pode causar à resistência à insulina (fígado e músculo) e alteração da secreção de insulina (pâncreas).

Gordura ectópica em vários tecidos além do tecido subcutâneo e suas potenciais consequências. Modificado de Satar, 2014.

O exemplo mais estudado é o acúmulo de gordura no fígado. A doença hepática gordurosa não alcoólica está presente em mais da metade dos pacientes com diabetes tipo 2.

gotas de gordura vistas ao microscópio

A lipotoxicidade nas ilhotas pancreáticas poderia levar a disfunção da célula beta e diminuição da sua capacidade de secretar insulina, processo descrito em mais detalhes a seguir.

No sangue, o aumento da gordura seria representado pelo aumento dos triglicérides. O aumento desse tipo de gordura no sangue é característica da dislipidemia aterogênica, implicada no processo de aterosclerose de doença cardiovascular que vitimiza a maioria dos pacientes com diabetes tipo 2.

Os dois ciclos viciosos no DM

Na mesma linha de pensamento, agora considerando que a gordura pode tranbordar do fígado para o pâncreas, em 2008, um pesquisador chamado Taylor desenvolveu uma teoria de que chamou de “the twin cycle hypotesis”, em tradução livre “hipótese do ciclo duplo”. Essa hipótese considera que o diabetes tipo 2 é causado especificamente por excesso de gordura no fígado que transborda para pâncreas, levando a diminuição da secreção de insulina.

Os dois ciclos viciosos do diabetes tipo 2. Adaptado de Taylor, 2008.

Se a ingesta de calorias é excessiva, a gordura vai se acumulando no fígado. Indivíduos com algum grau de resistência insulínica vão acumular gordura no fígado mais rapidamente. À medida em que a gordura hepática aumenta, o processo de produção de glicose pelo fígado torna-se menos sensível à supressão pela insulina (em condições normais, a insulina inibe a produção de glicose pelo fígado)

A glicemia tende a aumentar e a insulina basal também se eleva. Esses processos forma o ciclo vicioso A (em azul). O aumento da gordura hepática acarreta aumento também da secreção de triglicérides pelo fígado. Todos os tecidos ficarão expostos a mais triglicerídeos que o necessário, mas a ilhotas pancreáticas são susceptíveis ao acúmulo de triglicérides localmente. A resposta da insulina pós alimentar fica reduzida. O ciclo vicioso B (em vermelho) causa defeito na regulação da glicose, e eventualmente a gordura e a glicose pode inibir a secreção de insulina pela ilhota até um ponto de causar diabetes.

A hipótese do ciclo duplo foi recentemente citada e testada no estudo DiRECT, que demostrou a remissão do diabetes tipo 2 em pessoas com até seis anos de diagnóstico e sem uso de insulina através da perda de peso com dieta de muito baixa caloria.

A deposição de gordura poderia ter o fluxo revertido também em fases precoces da cirurgia bariátrica, quando há uma melhora dramática da glicose em poucos dias após a cirurgia e não totalmente relacionada à perda de peso.

Fato curioso acontece com a classe de medicamentos para diabetes tioo 2 denominada glitazona. Mesmo mesmo com aumento do peso total, a pioglitazona também inverte o fluxo de deposição de gordura intra-abdominal para o tecido subcutâneo.

Considerações finais

Independente da estratégia, já foi amplamente demostrado que a redução de peso melhora o controle do diabetes e vários outros fatores de risco. Perder peso para o tratamento do diabetes tipo 2 pode levar à remissão da doença. Em outra postagem, vimos as várias faces do diabetes tipo 2, com sugestão de reclassificação do diabetes em cinco tipos. Sendo assim, não é possível dar a mesma sentença para todos as pessoas com diabetes.

Sim, é o diabetes tipo 2 é uma doença crônica que ainda não tem cura, mas pode entrar em remissão. O entendimento desses mecanismos e da importância da perda de peso pode mudar o curso da doença, muitas vezes pensada como inexoravelmente progressiva para falência total do pâncreas.

Referências

TAYLOR, R. Pathogenesis of type 2 diabetes: tracing the reverse route from cure to cause. Diabetologia, v. 51, n. 10, p. 1781-9, Oct 2008. ISSN 0012-186X. Disponível em: < https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/18726585 >.

SATTAR, N.; GILL, J. M. Type 2 diabetes as a disease of ectopic fat? BMC Med, v. 12, p. 123, Aug 2014. ISSN 1741-7015. Disponível em: < https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/25159817 >.

LEAN, M. E. et al. Primary care-led weight management for remission of type 2 diabetes (DiRECT): an open-label, cluster-randomised trial. Lancet, v. 391, n. 10120, p. 541-551, 02 2018. ISSN 1474-547X. Disponível em: < https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/29221645 >.

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