Alguns dilemas a gente enfrenta dia a dia. Eles não são só nossos, mas das pacientes também. As escolhas se tornam difíceis quando a situação é especial, como diagnosticar e tratar as disfunções da tireoide na amamentação.
A situação é a seguinte: chega uma mulher no puerpério, amamentando e quer saber se o cansaço extremo, irritabilidade e variação de peso pode ser problema da tireoide, pois já ouviu falar que esses sintomas podem corresponder às disfunções dessa glândula.
O que pode ser quando o TSH está alto no puerpério?
Pode ser sim, uma tireoidite pós-parto e, quando a gente vê o TSH alto, a gente pode dar o diagnóstico de forma mais segura e o tratamento com a reposição do hormônio da tireoide, quando inidicado, não oferece risco.

O que pode ser quando o TSH está baixo no pós-parto?
Estamos diante de um sinal de que há excesso de hormônio de tireoide no sangue. A gente chama esse sinal de tireotoxicose, mas não é raro que a gente fale no termo hipertireoidismo para facilitar o entendimento. O T4 livre pode estar normal ou alto com o TSH baixo, em outras palavras, um hipertireoidismo subclínico ou pleno.
Quais são as causas do excesso de hormônio de tireoide no puerpério?
A causa mais comum de tireotoxicose no puerpério é a tireoidite pós-parto, que pode ter aumento dos hormônios de tireoide circulantes em cerca de 4% dos casos. Vou trazer de volta uma figura que eu adoro para exemplificar a montanha russa dos hormônios na tireoidite.

No puerpério há um de 3 a 4 vezes na incidência de novos casos de Doença de Graves.
É importante a gente diferenciar tireoidite pós-parto da Doença de Graves, porque no primeiro caso, os hormônios estão aumentados por destruição da glândula e liberação do hormônio pré-estocado e, no segundo caso, é por aumento da produção de hormônio, que tecnicamente falando é o hipertireoidismo mesmo. Vocês já devem imaginar que o tratamento é diferente.
Como diferenciar a tireoidite pós-parto da Doença de Graves no pós-parto?
Algumas vezes, os autoanticorpos podem dar uma pista, mas não uma garantia do diagnóstico. A tireoidite pós-parto geralmente tem os anticorpos contra a tireoide positivos, que são os relacionados à tireoidite de Hashimoto também: o anti-TPO e o antitireoglobulina. Na Doença de Graves, o anticorpo contra o receptor de TSH, o TRAB, é o marcador da doença. O que pode confundir um pouco é que existem os casos mistos, em que as pacientes têm todos os anticorpos e a doença (hipo ou hiper) que vai predominar pode ser ora um ora outra, o tal do Hashi-Graves.
Se não houvesse o fator amamentação, a gente pediria uma cintilografia de tireoide. Mesmo assim, temos que considerar que é recomendado que depois desse exame, a pessoa que recebeu o iodo radioativo fique muito próximo às crianças e mulheres grávidas. Meio complicado, não é?
Na tireotoxicose por destruição da glândula, a cintilografia não vai captar o iodo radioativo do exame, pois o maquinário para fabricação dos hormônios está avariado nesse instante. Na tireotoxicose por hipertireoidismo, a fabricação dos hormônios de tireoide está aumentada e a gente vai ver a tireoide trabalhando mais pela captação do iodo radioativo.

A radiação não combina com gravidez e nem amamentação. Se for mesmo necessário fazer esse exame, há algumas recomendações práticas. A lactante deve bombear e descartar o seu leite por vários dias, até o iodo radioativo ser eliminado do corpo. Quanto tempo, o texto consultado não fala.
Na tireotoxicose por tireoidite pós-parto, apenas prescrevemos sintomáticos, como é o caso de medicamentos que controlam os batimentos cardíacos acelerados, chamados de betabloqueadores até esses sintomas melhorarem e a gente suspende posteriormente.

Se a tireotoxicose é mais tardia no pós-parto, mais prolongada e com TRAB positivo, há uma probabilidade maior de ser Doença de Graves. Outra pista é se o paciente tem estigmas da Doença de Graves, como os olhos saltados, ou exoftalmo. Se esse for o diagnóstico dado, temos um outro dilema, já que as duas medicações para o tratamento dessa doença têm contraindicação na bula, pois elas são excretadas no leite. Uma pergunta que paira no ar é:
Posso usar tiamazol ou propiltiouracil na amamentação?
Na bula, tanto o tiamazol como o propiltiouracil têm contraindicação para uso em mulheres que estão amamentando. Contudo, a Associação Americana de Tireoide, na sua última diretriz, avaliou os estudos sobre os impactos dessas medicações na saúde do bebê.
O que passa no leite é uma fração muito pequena da medicação. Para vocês terem uma ideia, o propiltiouracil (PTU) contido no leite após 4h após sua ingestão é de menor que 0,08%. Dessa forma, se a mãe recebe 200mg três vezes ao dia, vai oferecer no ao bebê apenas 0,149mg em seu leite.
O tiamazol, mais conhecido pelo nome comercial de tapazol®, passa mais facilmente para o leite, cerca de 0,1 a 0,2% da dose tomada.
Um estudo foi mais além, pois avaliou o desenvolvimento intelectual de crianças cujas mãe tomaram essas medicações na amamentação. O resultado é que não houve nenhum impacto negativo do uso dessas medicações sobre a cognição dessas crianças.
Tomando em conjunto todos esses dados, os pesquisadores consideram que essas medicações são seguras. Dentro do perfil dos estudos realizados, sugere-se usar a menor dose necessária para controlar a doença, limitando a 20mg de tiamazol ou 450mg de propiltiouracil ao dia.
Considerações finais
Na medicina, a gente tem sempre que avaliar o risco-benefício de tudo que a gente recomenda. Muitas vezes, a gente usa medicações que não têm indicação em bula para determinada doença, mas que tem todo sentido usar. Esse é o que chamamos de uso “off-label”. A espironolactona é uma delas.
Em outros casos, há uma contraindicação em bula. Ai, a coisa complica um pouco. Se a medicação passa pela placenta na gravidez ou pelo leite materno na amamentação, geralmente ela não é recomendada. Se for ver direitinho, quase nenhuma medicação é segura em bula nessas situações.
Uma coisa é passar pela placenta ou pelo leite outra coisa é se a medicação efetivamente fez mal para o bebê que está sendo gestado ou amamentado.
As medicações para tireoide são bastante antigas e eu presumo que estudos mais aprofundados não foram realizados durante a gestação ou amamentação. A categoria farmacológica delas é considerada D, em que há evidência de risco para o feto, mas considera o seu uso se for mais benéfico que maléfico e se não houver alternativas terapêuticas. Os dados em humanos são de estudos menores em que inadvertidamente ou de forma consentida e aprovada eticamente as mulheres estavam usando essas medicações durante a gravidez ou puerpério.
Resumo da história: há realmente contraindicação em bula para o uso das medicações para o hipertireoidismo na amamentação, mas há estudos posteriores evidenciam sua segurança. Se for seguir a bula mesmo, teríamos que pedir para a mulher parar de amamentar…sugestão complicada e decisão difícil. Por outro lado, se não formos seguir a bula, o risco-benefício deve discutido e acordado entre médico e paciente.
Por último, vou deixar o quadro completo de investigação e tratamento das disfunções tireoidianas no puerpério.

Referências
Alexander EK, Pearce EN, Brent GA, Brown RS, Chen H, Dosiou C, Grobman WA, Laurberg P, Lazarus JH, Mandel SJ, Peeters RP, Sullivan S. 2017 Guidelines of the American Thyroid Association for the Diagnosis and Management of Thyroid Disease During Pregnancy and the Postpartum. Thyroid. 2017 Mar;27(3):315-389. doi: 10.1089/thy.2016.0457. Erratum in: Thyroid. 2017 Sep;27(9):1212. PMID: 28056690.
Peng CC, Pearce EN. An update on thyroid disorders in the postpartum period. J Endocrinol Invest. 2022 Aug;45(8):1497-1506. doi: 10.1007/s40618-022-01762-1. Epub 2022 Feb 18. PMID: 35181848.
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