Hipercolesterolemia familial ou familiar – colesterol LDL alto

Imagine alguém com o colesterol ruim alto (o LDL) desde o nascimento…. e que esse colesterol ruim se deposita nas artérias e outros tecidos de forma cumulativa durante toda a vida. Pois bem, todo mundo já sabe que o colesterol ruim alto pode causar infarto, derrame e outros problemas cardiovasculares.  São exatamente esses problemas que acontecem de forma muito precoce em quem tem a doença chamada hipercolesterolemia familiar (HF) não tratada adequadamente.

Nessa doença genética (portanto, hereditária), o colesterol LDL pode chegar a níveis de até 500mg/dL nas suas formas mais graves.

Sabe aquela pessoa que é magra, faz exercício físico regularmente, come tudo saudável e mesmo assim tem colesterol alto? Pode ser que ela tenha a doença hipercolesterolemia familiar e que fazer dieta e exercício não sejam suficientes para controlar o colesterol.

Aqui um parêntese para uma pergunta que me fizeram um outro dia: por que “familial”? Resposta: esse é o termo mais visto nos textos técnicos, usados para situações relativas à família, diferentemente de “familiar” que significa algo que é previamente conhecido, íntimo.

A hipercolesterolemia familial é aquela tem por base a herança genética e se concentra dentro de uma mesma família. Por força do hábito, usarei o termo familiar como sinônimo de familial.

Não se pode deixar escapar esse diagnóstico

A hipercolesterolemia familiar afeta 1 em 200 até 1 em 500 pessoas, ou seja, é uma problema bem comum. É uma doença autossômica dominante, o que significa que pelo menos um dos dois genes herdados (um de cada genitor) é defeituoso.

Quando apenas um gene é defeituoso, falamos que o paciente é heterozigoto; quando os dois genes são defeituosos, o paciente é homozigoto para doença e os níveis e as manifestações colesterol alto são mais graves e precoces, podendo levar a infarto até em adolescentes.

O fígado não consegue “limpar” o colesterol ruim do sangue

Na HF, o defeito pode estar em diferentes genes envolvidos no metabolismo do colesterol LDL (colesterol ruim). A grande maioria dos defeitos genéticos estão nos genes que fabricam o receptor de LDL, como descritos no quadro abaixo.

MutaçõesGeneMecanismoFrequência
Receptor de LDLLDLRReceptor é ausente ou tem capacidade reduzida de retirar o LDL da circulação85-90% dos casos
ApoBApoBProblema na ligação do LDL ao receptor5-10% dos casos
Ganho de função do PCSK9PCSK9Aumento dos níveis de PCSK9 que aumentam a degradação do receptor de LDLRaro
Perda de função da proteína adaptadora do receptor do LDLLDLRAP1Redução da internalização do complexo LDL/receptor do LDLRaro
Tabela 1. Tipos de mutação genética que levam à hipercolesterolemia familiar
Figura 2. Metabolismo intracelular do colesterol LDL

O LDL é retirado da circulação principalmente pelo fígado. Dessa forma, problemas no “clareamento” (limpeza) da circulação das partículas de LDL fazem aumentar seus níveis no sangue. Como consequência, o excesso de colesterol se deposita nas paredes das artérias (aterosclerose) até entupir os vasos e impedir a circulação do sangue em áreas nobres como o coração e cérebro, resultando em infarto e derrame, respectivamente.

O LDL é captado pelo fígado e retirado da circulação através do receptor nos hepatócitos. Uma vez que há defeitos nos receptores de LDL, o colesterol LDL fica mais tempo circulando e com maior propabilidade de se depositar nos vasos e demais tecidos
Figura 2. Metabolismo das lipoproteínas e fisiopatologia da hipercolesterolemia familiar

Quando investigar a HF e em quem?

O diagnóstico da hipercolesterolemia familiar é principalmente clínico. Apesar de ser uma doença genética, o exame dos genes não é rotineiramente realizado.

Os achados clínicos que sugerem o diagnóstico de HF são:

  • Doença cardiovascular precoce (homens com menos de 55 anos e mulheres com menos de 60 anos);
  • Sinais físicos de excesso de colesterol (arco senil, xantoma, xantelasma, espessamento de tendões);
  • Dosagem de LDL-colesterol > 190mg/dL em adultos e > 150mg/dL em crianças, após exclusão de outras causas de aumento do LDL(hipotireoidismo, síndrome nefrótica, etc.);
  • Familiar com aumento do colesterol;
  • História na família de doença cardiovascular precoce;

Há 80% de chance de HF na população geral se nos deparamos com dosagem de LDL nos seguintes níveis:

  • >250mg/dL em adultos com > 30 anos;
  • >220mg/dL em adultos dos 20-29 anos;
  • >190 mg/dL em pacientes com menos de 20 anos

Uma vez identificada uma pessoa com hipercolesterolemia familiar, recomenda-se o “rastreamento em cascata”, que consiste em fazer a dosagem do colesterol em parentes do primeiro grau da pessoa acometida. Essa estratégia é diferente do que é adotada para a população geral, na qual se recomenda a medida do LDL nos homens acima de 40 anos e mulheres acima 50 anos ou após a menopausa. 

No rastreamento em cascata, após a descoberta de um caso de hipercolesterolemia familiar, as crianças devem ser investigadas também. A chance de um descendente do primeiro grau de uma pessoa com HF ser afetado com a doença é de 50%.

É preciso descartar outras causas de colesterol LDL alto

Nem todos que têm colesterol muito alto têm HF. Para chegar a esse diagnóstico, deve-se investigar e tratar outras causas potenciais.

Doenças diversas podem causar aumento do colesterol, entre elas estão o hipotireoidismo, o diabetes, a síndrome nefrótica, as doenças hepáticas; ou o uso de medicações como corticoides e diuréticos; o excesso de álcool, a dieta muito pobre em nutrientes e o sedentarismo. O tratamento dessas condições, quando possível, pode reduzir o colesterol sem a necessidade de medicações específicas para baixar o LDL.

Tratamento da Hipercolesterolemia Familiar

Forma heterozigota

Indicando o tratamento e definindo o alvo do LDL na HF

Em pessoas com aumento do colesterol, é comum usarmos calculadoras para estimar o risco que ela tenha um infarto ou outra doença cardiovascular em 10 anos.  A mais conhecida é o escore de Framingham, que vai somando a idade, nível de colesterol, outros fatores de risco para indicar ou não o início da estatina. O fato é que essas calculadoras NÃO servem para serem usadas na hipercolesterolemia familiar, pois geralmente subestimam o risco cardiovascular.

Muitos textos citam que o tratamento deve reduzir LDL mais de 50% do basal, ou seja, se o LDL inicial é igual 220mg/dL, o tratamento deve fazer com que o LDL chegue a < 110mg/dL. Outros, orientam que alvo de LDL < 100mg/dL ou <70mg/dL naqueles pacientes que já têm doença cardiovascular diagnosticada.

Nas crianças, o objetivo do tratamento é LDL< 135mg/dL. Se esse alvo não for atingido com mudança de estilo de vida, as estatinas estão indicadas por volta de 8 a 10 anos de idade nas crianças heterozigotas com hipercolesterolemia familiar.

As estatinas são utilizadas de forma preferencial na hipercolesterolemia familiar. Elas agem inibindo a enzima HMG-CoA redutase, essencial na formação do colesterol. Uma vez bloqueada essa enzima, o colesterol dentro da das células hepáticas diminui, sinalizando para que haja aumento da produção de receptores de LDL pelo fígado a fim de restaurar a quantidade de colesterol dentro da célula hepática.

A maior produção de receptores de LDL pelas estatinas é providencial para aumentar retirada LDL da circulação em qualquer tipo condição, genética ou não, que leva ao aumento de colesterol LDL. Paralelamente ao aumento de captação do LDL, há também redução da produção de VLDL pelo fígado que seria transformado em LDL posteriormente.

As estatinas mais potentes (rosuvastatina e atorvastatina) devem ser utilizadas como medicamentos de primeira escolha.

EstatinaDose (mg)Redução média (%)
Rosuvastatina5-4046-55
Atorvastatina10-8037-51
Sinvastatina5-8026-47
Lovastatina10-8021-40
Pravastatina10-8020-36
Fluvastatina20-8022-35
Pitavastatina1-432-43
Estatinas com suas doses e potência na redução média percentual do LDL

Dobrar a dose de estatina reduz adicionalmente o colesterol em 6 a 7%. Se faltar mais que essa porcentagem para atingir o alvo, o mais adequado é associar uma ou mais medicações, tais como a ezetimiba, os sequestradores de ácidos biliares (colestiramina, colesevalam), os fibratos ou a niacina.

Cessação do tabagismo, controle da hipertensão e diabetes são essenciais para reduzir o risco de aterosclerose. Claro que atividade física, peso saudável são também fundamentais para reduzir o risco de doença cardiovascular.

Um aviso importante para as mulheres com hipercolesterolemia familiar em idade fértil é que devem usar algum método contraceptivo enquanto estiverem em uso de medicação para redução do colesterol. Caso planejem engravidar, devem parar o tratamento para a hipercolesterolemia (principalmente estatina) um mês antes da suspensão do método contraceptivo.

Forma homozigota

Os pacientes homozigotos para HF devem ser encaminhados para centros especializados ou hospitais universitários. Um procedimento mais especializado como aférese das gorduras no sangue pode ser necessário associado às medicações antigas e novas utilizadas para a forma heterozigota.

Na aférese terapêutica, uma certa quantidade de partículas de LDL colesterol é retirada do plasma através de máquinas e o sangue mais “limpo” dessas partículas é novamente devolvido para o paciente. Em casos extremos, até transplante de fígado pode ser indicado.

Novas medicações

Inibidores da PCSK9

A proteína PCSK9 (do inglês, proprotein convertase subtilisin-kexin type 9) ajuda na degradação do receptor do LDL no fígado. Portanto, inibir essa proteína manteria o receptor de LDL ativo por mais tempo. Vimos na primeira tabela que mutações que aumentam a função da PCSK9 é uma causa rara de hipercolesterolemia familiar.

Mirando esse alvo terapêutico, foram desenvolvidos anticorpos contra a PCSK9. O evolocumabe e o alirocumabe são representantes dessa classe de medicações e aprovados no Brasil para hipercolesterolemia familiar entre outras indicações. Seu uso é subcutâneo e a dose pode ser a cada duas semanas ou mensalmente, dependendo da dose.

Como toda medicação nova e biológica, os inibidores do PCSK9 são bastante caros. Essa classe de medicação deve ser utilizada apenas em pacientes que não atingiram o alvo terapêutico com as doses máximas toleradas das medicações usuais ou que tenham intolerância às estatinas.

Considerações finais

A hipercolesterolemia familial ou familiar é sem dúvida uma doença em que o rastreamento e tratamento agressivo fazem a maior diferença. O que é um pouco diferente do que já foi comentado, por exemplo, sobre rastrear nódulo de tireoide. Na HF fazer mais é importante.

Falar sobre esse tema me afeta, pois tenho uma relação bem pessoal com o tema. Meu pai morreu precocemente aos 59 anos por um provável infarto fulminante. Nunca fui gordinha e nem sedentária, mas descobri o colesterol alto, nos níveis sugestivos de HF, por volta dos 25 anos enquanto estava na residência médica. Dieta rigorosa, exercício, exclusão de outras causas de colesterol alto… nada resolveu para baixar o meu colesterol! Portanto, tenho essa doença da hipercolesterolemia familiar e fui verificar na minha grande família que tem alguns irmãos afetados. Hoje e para sempre as estatinas são minhas companheiras e dou graças pela descoberta delas.

Referências

  1. Raal FJ, Hovingh GK, Catapano AL. Familial hypercholesterolemia treatments: Guidelines and new therapies. Atherosclerosis. 2018;277:483-492. doi:10.1016/j.atherosclerosis.2018.06.859
  2. Bouhairie VE, Goldberg AC. Familial Hypercholesterolemia. Endocrinol Metab Clin North Am. 2016;45(1):1-16. doi:10.1016/j.ecl.2015.09.001
  3. Turgeon RD, Barry AR, Pearson GJ. Familial hypercholesterolemia: Review of diagnosis, screening, and treatment. Can Fam Physician. 2016;62(1):32-37.

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