Diabetes e demências

As demências são caracterizadas por comprometimento de múltiplas funções cognitivas, como memória, linguagem, habilidades visoespaciais, funções executivas e de atenção, com consequente prejuízo das atividades funcionais e sociais. O diabetes tipo 2 é uma síndrome caracterizada pelo aumento da glicose por defeitos na ação ou deficiência de insulina, resultando em níveis aumentados de açúcar no sangue (hiperglicemia).

A Doença de Alzheimer e demais demências relacionadas – déficit cognitivo leve, doenças vasculares que contribuem para déficit cognitivo e demência, doença dos corpúsculos de Lewy e demências fronto-temporais –  pareciam ter uma relação não tão óbvia com o diabetes a não ser por conta do acidente vascular encefálico, conhecido popularmente como derrame ou AVC, que está  presente com frequência nos dois casos. Esse tipo de associação foi inicialmente descrita no fim do século passado pelo Estudo de Rotterdam e reafirmada por vários estudos subsequentes.

Em relação à Doença de Alzheimer, existe até um termo que foi sugerido para coexistência entre esse tipo de demência e diabetes, o “diabetes tipo 3″, que afetaria seletivamente o cérebro. Há pouco tempo, o tema foi revisitado em artigo científico da Nature Reviews (1).

Resistência à insulina e as demências

A resistência insulínica é uma defeito que antecede e está presente no diabetes tipo 2 (DM2), contribuindo não só para o aumento da glicose, mas também para alterações no metabolismo dos lipídios, aumento dos marcadores inflamatórios, de estresse oxidativo e aterosclerose que a acompanha.

Ainda não se sabe bem se a insulina é ou não produzida localmente no tecido cerebral ou se a insulina produzida pelo pâncreas consegue chegar ao cérebro. O fato é que a concentração de insulina é bem menor no fluido cerebral que no sangue. Ao contrário dos tecidos periféricos, no sistema nervoso central, a insulina não tem influência na captação de glicose pelas células nervosas. A ação da insulina no cérebro de indivíduos saudáveis inclui a modulação central do metabolismo corporal, aprimoramento ou regulação da memória e outras funções cognitivas e ligadas às emoções.

Uma das principais hipóteses para as alterações cerebrais no diabetes é que haja uma resistência à ação da insulina no tecido cerebral. A resistência insulínica celular é definida como uma alteração na sinalização molecular em resposta à insulina. No organismo, a resistência insulínica pode ser definida como a inabilidade da insulina em regular os níveis de glicose. Funcionalmente, a resistência à insulina cerebral pode se manifestar na deficiência de regular os nutrientes, disfunções cognitivas e de humor, bem como alterações neuropatológicas e neurodegenerativas.

Diabetes e Doença de Alzheimer

A Doença de Alzheimer (DA) é a principal causa de demência em idosos. Marcadores neuropatológicos da doença incluem depósito de placas extracelulares de proteína beta-amiloide e emaranhados intracelulares da proteína tau (Fig 1).

Doenca Alzheirmer neuropatologia
Fig 1. Alterações patológicas dos neurônios na Doença de Alzheimer

Os principais achados em pacientes com diabetes tipo 2 que dão suporte a relação com a Doença de Alzheimer e desordens relacionadas são:

  • Déficits cognitivos, especialmente em atenção, processamento de informação, funções executivas, memória;
  • Alterações do humor, principalmente depressão;
  • Aterosclerose de grandes vasos e doença isquêmica de pequenos vasos;
  • Atrofia cerebral;
  • Diminuição do metabolismo em córtex parietal, temporal e frontal;
  • Diminuição da ativação mediada por insulina de atividade metabólica e encefalográfica;
  • Aumento do risco de progressão das demências neurodegenerativas;
  • Alterações em neuroimagem, marcadores compatíveis com níveis anormais de beta-amiloide e emaranhados proteicos;
  • Achados neuropatológicos de placas beta-amiloides e emaranhados proteicos

O risco de DA aumenta em 50% em pessoas com diabetes quando comparados à população geral. A maioria dos estudos tem sido conduzida em pessoas de meia idade ou idosos. Foi observado que o maior grau de déficit cognitivo em pessoas com diabetes tipo 2 esteve associado a uma maior duração do diabetes, mau controle glicêmico, e presença outras de complicações diabéticas (retinopatia, doença renal do diabetes), e também de comorbidades como hipertensão e depressão.

Diabetes e Doença de Parkinson

As alterações motoras são características básicas da Doença de Parkinson (DP), entretanto um dos mais significativos sintomas não motores é o desenvolvimento do declínio cognitivo e demência. Embora a DP e a demência com corpúsculos de Lewy  compartilhem aspectos clínicos e patológicos similares, o desenvolvimento de alterações cognitivas ainda permanecem obscuras. A DP é a segunda maior causa de doença neurodegenerativa. Os corpúsculos de Lewy são depósitos de proteína alfa-sinucleína) nas células cerebrais.

Corpúsculos de Lewy
Ilustração mostrando neurônios contendo corpúsculo de Lewy, representados pelas esferas que vermelhas

Evidências científicas indicam que cerca de 50% dos pacientes com Doença de Parkinson também carregam alterações típicas de DA já citadas: os depósitos em placas da proteína beta-amiloide e emaranhados da proteína tau hiperfosforiladas.

Em 2018 foi publicado um estudo que relacionou o diabetes como fator de risco também para Doença de Parkinson (2). Os dados dos pacientes foram obtidos de um registro de quando foram hospitalizadas por diabetes e comparadas a um grupo de pessoas hospitalizadas e que não tinham diabetes. Cerca de dois milhões de pessoas com diabetes foram comparadas a pouco mais de seis milhões de pessoas sem diabetes; esses grupos foram avaliados por um período de 12 anos de forma retrospectiva. O grupo com diabetes desenvolveu índices maiores de DP (32% a mais) quando comparados às pessoas sem diabetes. As pessoas que tinham complicações decorrente do diabetes exibiam risco maior de desenvolver DP e em indivíduos mais jovens.

Esses dados sugerem uma predisposição genética ou também vias patogênicas alteradas em comum, com potenciais implicações clínicas e terapêuticas.

O NEJM, conceituado periódico científico, fez um comentário sobre esse estudo, reconhecendo que há esse resultado é consistente com a as evidências anteriores de múltiplos estudos da ligação entre DP e diabetes. O fato de haver maior risco entre pessoas jovens fala a favor do fator genético. Tanto em jovens como pessoas mais velhas, o processo degenerativo pode levar a alterações de vias centrais da homeostase glicêmica. Relatos sugerem que 50 a 80% de pacientes com Doença de Parkinson têm alteração na glicemia.

Onde estamos e para onde vamos?

Apesar de estudos consistentes que demonstram a ligação entre diabetes e as demências, ainda restam muitos enigmas a serem desvendados, tais como: quão importante é a resistência insulínica no processo degenerativo, se é causa ou consequência das alterações patológicas da Doença de Alzheimer e quais os mecanismos no DM2 que levam a resistência à insulina no cérebro e declínio cognitivo etc.

O DM2 é associado com resistência insulínica, e os estudos sugerem que a resistência insulínica cerebral é um achado nas demências. Entretanto, se as duas condições são meramente correlacionadas ou se tem uma relação causa-efeito no processo de envelhecimento, ainda não temos essa questão totalmente elucidada.

O entendimento dos mecanismos que ligam o diabetes às demências certamente abrirá caminho para a prevenção e tratamento de uma parte das demências. Algumas medicações antidiabéticas como análogos de GLP1, em modelos animais, e também o uso de insulina nasal (3), em humanos, se mostraram resultados promissores.

Em resumo, ainda estamos no aguardo de mais estudos sobre as demências. Não devemos esquecer que já há muitas evidências que o controle do diabetes é certamente importante para evitar suas complicações clássicas nos vasos sanguíneos em todo corpo, quiçá de uma complicação cerebral adicional.

Referências

1              ARNOLD, S. E.  et al. Brain insulin resistance in type 2 diabetes and Alzheimer disease: concepts and conundrums. Nat Rev Neurol, v. 14, n. 3, p. 168-181, Mar 2018. ISSN 1759-4766.

2              DE PABLO-FERNANDEZ, E.  et al. Association between diabetes and subsequent Parkinson disease: A record-linkage cohort study. Neurology, v. 91, n. 2, p. e139-e142, Jul 2018. ISSN 1526-632X.

3              BENEDICT, C.; GRILLO, C. A. Insulin Resistance as a Therapeutic Target in the Treatment of Alzheimer’s Disease: A State-of-the-Art Review. Front Neurosci, v. 12, p. 215,  2018. ISSN 1662-4548.

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